'O salário espiritual de ver o paciente melhorar não tem preço', diz médico referência em doença de Chagas

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 10/06/2019 às 14:26
O cardiologista Wilson de Oliveira Júnior é coordenador do Serviço de Referência em Doença de Chagas da UPE e fundador, em 1987, da primeira associação de pacientes do mundo com a enfermidade (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)
O cardiologista Wilson de Oliveira Júnior é coordenador do Serviço de Referência em Doença de Chagas da UPE e fundador, em 1987, da primeira associação de pacientes do mundo com a enfermidade (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem) FOTO: O cardiologista Wilson de Oliveira Júnior é coordenador do Serviço de Referência em Doença de Chagas da UPE e fundador, em 1987, da primeira associação de pacientes do mundo com a enfermidade (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

Coordenador do Serviço de Referência em Doença de Chagas da Universidade de Pernambuco (UPE) e fundador, em 1987, da primeira associação de pacientes do mundo com a enfermidade, o cardiologista Wilson de Oliveira Júnior conversa com Cinthya Leite sobre as lições deixadas pelo maior surto de doença de Chagas do Estado (e possivelmente o maior do Brasil), ocorrido em Ibimirim, Sertão do Estado.

JC – Quais as lições trazidas por este surto?

WILSON DE OLIVEIRA JÚNIOR – Vivemos algo realmente novo, apesar de o primeiro caso de transmissão oral da doença de Chagas ter ocorrido na década de 1930, na Argentina. A questão agora é que a frequência (desse tipo de contaminação) tem se mostrado diferente. De todos os casos novos atualmente, mais de 70% são por transmissão oral. Entre os ensinamentos que ficam, diria que precisamos incluir esse diagnóstico (de Chagas, entre as suspeitas), especialmente quando se tem uma febre prolongada. O aprendizado tem sido entender que esse tipo de contaminação tem se tornado mais comum. No Pará, a maior parte dos casos novos tem relação com o açaí, que não deve ser criminalizado isoladamente, pois qualquer alimento pode ser contaminado (com o barbeiro).

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JC – A doença sempre traz complicações para o coração?

WILSON – Nem todo paciente desenvolve doença cardíaca. Alguns manifestam miocardite (inflamação do músculo do coração) na fase aguda (inicial), mas podem regredir. Não é claro, contudo, sabermos quais das pessoas que desenvolveram miocardite permanecerão com o problema. Esse é o grande enigma de Chagas. Berenice é um exemplo: aos 2 anos de vida, tornou-se a primeira paciente da história diagnosticada com a doença, há 110 anos, em Minas Gerais. Ela faleceu aos 78 anos e por uma causa sem relação com Chagas. Sempre mostro o retrato de Berenice aos doentes, que geralmente ficam muito ansiosos com o diagnóstico.

JC – Como está o emocional dos pacientes deste surto em Ibimirim, no Sertão do Estado? Estão angustiados?

WILSON – Sem dúvidas! Até imaginava que o impacto seria maior. O detalhe é que a reação à doença é subjetiva, depende de cada pessoa. Uma coisa que precisa ser ressaltada é a falta de conhecimento sobre Chagas; é uma doença invisível. É gerada pela pobreza, que gera mais pobreza. Por isso, eu me envolvo tanto com as causas relacionadas a Chagas, que precisa de mais visibilidade. Para se ter ideia, a primeira reunião da Organização Mundial de Saúde, em Genebra, sobre Chagas foi realizada apenas em 2009. Como pode? Uma doença de 110 anos...

JC – O programa estadual de doenças negligenciadas identificou, em 2018, 40 municípios pernambucanos com barbeiro infectado. Como isso chama a sua atenção?

WILSON – A doença de Chagas jamais será erradicada. Ela é controlada. Nem todo barbeiro tem competência para transmitir a enfermidade. Com este surto (em Ibimirim), a mídia fez uma importante divulgação de uma doença silenciosa e silenciada. Nunca vi se falar tanto, no consultório, sobre Chagas como agora. Uma coisa é certa: se baixarmos a guarda, a doença volta (a se disseminar como em décadas passadas).

JC – Qual o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na doença de Chagas?

WILSON – Se há sofrimento hoje, pode ter certeza de que, antes do SUS, era muito maior. Há muita coisa a melhorar. Mas, se o SUS não existisse, precisaria ser criado. É necessário avançar, por exemplo, com a atenção básica. Cerca de 85% dos doentes com Chagas poderiam ser atendidos na assistência primária.

JC – Por que começou a trabalhar com Chagas?

WILSON – Eu era responsável por uma enfermaria de doenças do músculo cardíaco, e havia semanas que praticamente só atendíamos pacientes com Chagas. Essas pessoas voltavam frequentemente para se internar porque não contavam com acompanhamento (especializado). Então, montamos um serviço para elas terem alta e continuarem tomando a medicação. O problema da doença crônica é manter o tratamento, e a relação médico-paciente é o primeiro impacto. Há trabalhos que mostram que 20% das receitas de medicamentos são rasgadas antes de os pacientes chegarem à farmácia, porque houve falha na comunicação (médico-paciente). Não adianta ter um tratamento excelente se o paciente não consegue segui-lo.

JC – É olhar o paciente de forma integral, não é?

WILSON – Veja só: no meu consultório, nunca entra um coração; entra uma pessoa. Não é a medicina da doença; é a medicina da pessoa. O salário espiritual de ver o paciente melhorar não tem preço.