Margarida Cantarelli, uma mulher que abriu portas

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ROMERO RAFAEL

Publicado em 08/03/2021 às 8:00
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Nas últimas décadas, Margarida Cantarelli esteve abrindo portas para ela e outras mulheres. A mais estreita dessas portas, a do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), a então juíza atravessou em 1999, tornando-se a primeira desembargadora daquela corte. "Eu digo sempre que tenho muito orgulho de ter sido a primeira, mas fico triste de ainda ser a única. Gostaria que outras juízas — e há muitas competentes — já tivessem ascendido ao tribunal", lamenta a magistrada, que se aposentou em 2014.

Enquanto despachava no TRF5, em 2001, na função de relatora, ela votou favorável à concessão de união estável para uma relação homoafetiva de dois homens no Rio Grande do Norte, garantindo pensão ao viúvo de um funcionário público federal. Era uma decisão inédita no Brasil, que o Supremo Tribunal Federal (STF) tomaria igual só dez anos depois.

Na estrada pioneira de Margarida Cantarelli constam, ainda, as marcas de primeira desembargadora do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE), no biênio 2007-2009, e de primeira secretária da Casa Civil do Estado de PE, nomeada em 1979, no Governo Marco Maciel.

Já na história da Faculdade de Direito do Recife, onde lecionou e se aposentou, ela é listada como a segunda professora - à instituição, foi Bernadete Pedrosa quem primeiro chegou e abriu a porta.

Um sonho (impossível) realizado

Margarida Cantarelli conta que sonhava com a magistratura ainda no tempo em que os tribunais, por machismo, vetavam mulheres de seus concursos.

Consta que Auri Moura Costa foi a primeira juíza do Brasil, nomeada em 1939, pelo Tribunal de Justiça do Ceará, que a confundiu com um homem, por causa de seu nome. Pelo que recontam na história, somente em 1953, de fato, foi nomeada, como exceção à regra, a primeira juíza sabendo-se de seu gênero: Iete Bomilcar Ribeiro de Souza Passarella, pelo TJ do então Estado da Guanabara, atual Rio de Janeiro. Iete cruzou outra linha importante, tornando-se a primeira desembargadora do País, em 1974.

(Levantamento feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB, divulgado em 2019, revelou que dos 2.975 magistrados de 1º grau, instância, participantes da pesquisa, apenas 36,7% são mulheres. No 2º grau - onde se insere o TRF5 -, a representatividade feminina é ainda menor: somente 21,2%. E nos tribunais superiores, as mulheres representam apenas 18,5% do total de ministros. Nos tribunais de Justiça, Pernambuco amarga a última posição, entre os 26 estados e o Distrito Federal, no número de mulheres - equivale a míseros 2% do total de desembargadores).

Nesse cenário de quase completa exclusão da mulher na magistratura, Margarida Cantarelli seguiu a docência - que iniciou em 1967, no curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco - e também a advocacia - ocupando, inclusive, a vice-presidência da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional PE (OAB-PE), no biênio 1975-1977, anos de chumbo, dos quais ela recorda com o peso daqueles tempos: "Foi uma função muito árdua".

Anos depois, envolveu-se com a política. Foi candidata ao Senado, não eleita, em 1986, para o Congresso Constituinte. Teve passagens pelo Ministério da Educação e o de Assuntos de Integração Latino-Americana, entre outras atuações. E, antes de chegar ao TRF5, era secretária de Educação do Recife, na gestão do prefeito Roberto Magalhães, de 1997-1999.

Margarida Cantarelli tem dois filhos e dois netos - Foto: Dayvison Nunes/JC Imagem

"Não se pode parar"

Às vésperas de completar 77 anos, no dia 28 de março, Margarida Cantarelli, hoje, preside o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP), dirige a Comunicação do Real Hospital Português (RHP) e ainda leciona no programa de mestrado da Faculdade Damas. "A gente [professor] passa, conhecimento, experiência, e eles [alunos] nos passam energia, vida, vontade de crescer. É uma convivência muito saudável, eu gosto muito de ser professora", justifica sua permanência na sala de aula.

Margarida, não faz tempo, também presidiu a Academia Pernambucana de Letras (APL). Depois de se realizar na magistratura, abraçar a docência como ofício e ter flertado com a política, nos últimos anos, ela está interessada na cultura. Inclusive, atendeu a esta entrevista depois de participar de uma live sobre a Revolução Pernambucana de 1817 - motivo do feriado estadual da Data Magna, celebrada em 6 de março - com a Secretaria de Cultura do Estado.

"Não se pode parar, ainda tem um longo caminho pela frente. A área cultural não é muito valorizada, então tem que ser persistente."

Ou seja, Margarida continua sua marcha — "Com o mesmo entusiasmo, vontade de fazer as coisas, acreditando que sempre se pode construir algo novo e bom em benefício dos outros. Continuar servindo é o que me move".

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