Saudade deixa sua marca no São João 2020 em Pernambuco

Pedro Oliveira
Pedro Oliveira
Publicado em 30/06/2020 às 7:00
Artistas e produtores do São João tiveram que se adaptar em 2020 para minimizar a saudade provada pela Covid-19 - Foto: Acervo JC Imagem
Artistas e produtores do São João tiveram que se adaptar em 2020 para minimizar a saudade provada pela Covid-19 - Foto: Acervo JC Imagem

Em meio a um ano que reconfigurou hábitos, comportamentos e eventos devido à pandemia da Covid-19, a tradição do São João em 2020 teve na saudade um componente importante. Em Pernambuco, os amantes da festa, que exalta alguns dos mais bonitos elementos da cultura nordestina, tiveram que controlar a ansiedade e esperar os festejos “reais” por pelo menos mais um ano. O calor do arrasta-pé, o cheirinho da canjica, o colorido das quadrilhas e a emoção do forró... Agora, só em 2021.

Como se sabe, para evitar aglomerações e possíveis novos casos da doença, os festejos juninos foram cancelados nas principais cidades. Em Caruaru, maior dos polos pernambucanos, o prejuízo foi estimado em R$ 200 milhões, valor arrecadado no São João 2019, quando circularam na cidade cerca de 3 milhões de pessoas, de acordo com a assessoria de comunicação do município.

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Um impacto que atingiu também as mais de 12 mil pessoas que obtinham renda com os empregos diretos e indiretos proporcionados pelos festejos. Foi em meio a este contexto que o presidente da quadrilha junina Lumiar (foto abaixo), Fábio Andrade, lamentou o cancelamento da temporada do grupo, que já estava com quase todo o espetáculo pronto antes do isolamento social entrar em vigor.

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A quadrilha junina Lumiar, do bairro do Pina, Zona Sul do Recife, começa a se preparar para o São João 10 meses antes da festa. Com a pandemia, o espetáculo teve que ser adiado para 2021 - Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR

“Tudo isso foi uma loucura porque a gente vinha num pique muito grande. Estávamos com 70% do espetáculo construído. Praticamente todo repertório gravado em estúdio, figurino já apresentado e com a confecção iniciada. Ficamos tensos e perdidos. Depois, a gente percebeu que o São João 2020 de fato não ia acontecer. Entramos em contato com todos os nossos fornecedores e pedimos para parar e guardar todos os materiais”, relembra. O tema da apresentação do grupo seria “A Luz de Tieta”, em alusão à obra “Tieta do Agreste”, do romancista brasileiro Jorge Amado. No entanto, o espetáculo só deve ser apresentado em 2021, caso a pandemia esteja sob controle.

O depoimento de Fábio se soma ao sentimento das mais de 300 quadrilhas juninas existentes em Pernambuco, segundo números da Federação de Quadrilhas e Similares do Estado de Pernambuco (Fequajupe). “O mês de maio mexeu muito com o emocional de todos porque foi quando a ficha começou a cair. Percebemos uma tristeza muito grande porque temos grupos no WhatsApp, onde a gente faz contato com todos os componentes. E vimos também que os pagamentos pararam e as nossas atividades de captação financeira também. Ou seja, ficamos economicamente estagnados”, lamenta o presidente da quadrilha.

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O professor Climério de Oliveira, pesquisador do Programa de Pós-Graduação de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ajuda a entender o sentimento de saudade compartilhado por todos os que fazem o São João acontecer. Para alcançar a importância da festa para os nordestinos, é preciso compreender primeiro que a comemoração não é uma grife ou item de consumo, que se é comprado hoje e depois pode ser descartado.

“O São João não é uma marca de consumo porque sempre retornamos a ele. Vamos do passado ao presente e lançamos para o futuro, porque sabemos que a festa vai acontecer de novo. Por isso, é uma tradição. Isso é diferente de uma marca de carro, por exemplo, que você compra um no Brasil e vai existir um igual no Japão. O São João não. Ele é construído por processos humanos e, à medida que vai sendo realizado, é ali que está todo o nosso interesse”, esclarece.

“Vale lembrar da gama de elementos que diferenciam o São João de qualquer outra festa. Existe uma culinária peculiar à base de milho, tem dança, música, indumentária, imagens que viram filme de cinema, espaço físico, tudo que reforça a identidade daquele povo. Não é uma mera festa, é a sociedade mostrada através de uma festa”, complementa Oliveira.

Pensando na conservação dessa tradição durante a pandemia, o professor articulou o Festival São João na Rede, que, durante o mês de junho, ofereceu programação com música, dança, oficinas, debates, poesia e rodas de conversa. Artistas de 14 estados brasileiros, como Elba Ramalho, Gilberto Gil e Lucy Alves, fizeram parte do evento, que teve a proposta de criar um fundo solidário para profissionais da cadeia produtiva da festa, que estão em situação de vulnerabilidade por causa do distanciamento social. As doações podem ser realizadas no site da iniciativa.

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O tradicional desfile de bacamarteiros em Caruaru também precisou ser adiado com o cancelamento do São João da cidade - Foto: Rafael Lima/Prefeitura de Caruaru

Chefe do Batalhão 333, grupo de bacamarteiros mais antigo de Caruaru, João Saturnino Neto exemplifica a fala do pesquisador. Hoje com 74 anos, ele conta que começou aos 12 anos, influenciado pelo pai e pelo avô, mas nunca presenciou um momento semelhante a este, que levou ao cancelamento do São João. Para se apresentar em junho, ele normalmente reúne os 18 integrantes do grupo para ensaiar a partir de março, mas com o adiamento deste ano, os festejos juninos foram improvisados.

“No mês de maio, nós já estamos prontos para as apresentações de junho. Infelizmente, por causa do coronavírus, não pudemos nos apresentar esse ano porque não pudemos ensaiar. Não teve São João para ninguém e cada comemorou do seu jeito. Eu mesmo assisti um programa, em casa com minha família, torcendo para que este momento passe logo, porque São João mesmo só ano que vem”, reflete.

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Componentes da banda Fulô de Mandacaru recorreram a tecnologia para minimizar os efeitos causados pela pandemia da Covid-19 no São João - Foto: Instagram/Reprodução

Mas, apesar da tristeza compartilhada por Fábio Andrade, João Saturnino e milhões de outras pessoas que fazem o São João acontecer, a música se uniu à tecnologia para realizar uma grande festa virtual na internet, onde, mesmo que distante e de casa, o público pôde sentir o clima junino. Foi o que fez a banda Fulô de Mandacaru, de Caruaru - que hoje acumula quase 1 milhão de inscritos no YouTube - em live no último dia 12. A apresentação virtual contou com mais de 100 músicas no repertório, durante mais de 6 horas, e somou, aproximadamente, 500 mil visualizações.

“A música leva o amor e acreditamos que, hoje, as lives são oportunidades de aproximar pessoas. No dia 1º de junho, chorei bastante pensando em tudo isso, porque nossa banda tem 19 anos e, durante esse tempo, nossa vida sempre foi estar na estrada. O que mais me deixa triste é não poder abraçar as pessoas. Foi um momento de muita tristeza e dor, e espero que isso possa passar o mais rápido possível para que a gente celebre o amor. Mas, enquanto vivemos este momento, vamos continuar levando alegria da forma que a gente puder”, desabafa Armandinho do Acordeom, esperançoso, integrante da banda.

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