Sem perder a essência, São João se fortalece com forró e diversidade de ritmos

Pedro Oliveira
Pedro Oliveira
Publicado em 29/06/2020 às 7:00
A presença de subgêneros originados do forró tem ganhado espaço no São João e aberto debates entre a classe artística - Foto: Acervo JC Imagem
A presença de subgêneros originados do forró tem ganhado espaço no São João e aberto debates entre a classe artística - Foto: Acervo JC Imagem

Representante cultural de peso - principalmente no Nordeste -, o forró é o lado musical do universo das festas juninas, herdado e passado adiante por muitos em incontáveis gerações. A tradição fica ainda mais evidente em junho, quando o ritmo ganha protagonismo nos arraiais de São João espalhados por todo o país. Assim como outros segmentos da cultura popular, o forró vem crescendo, abraçando outros subgêneros nascidos do legado deixado por ícones como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos e Sivuca, precursores dessa música que se originou no retrato da seca e do Sertão do Nordeste. 

Dotado de riquezas singulares, o forró é composto por signos e significados peculiares, que o colocam como o maior gênero musical do Brasil, como defende Climério Oliveira, professor do Programa de Pós-Graduação de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em seu livro “Forró: a codificação de Luiz Gonzaga”. “O forró é um grande guarda-chuva que incorpora o baião, xote, xaxado, o forró das bandas, e outros. Todos esses ritmos são agregados no gênero forró porque cada um narra um conjunto de símbolos, sentimentos, modos de pensar, agir e sentir, que partem para o mundo como o legado do nordestino”, argumenta o docente, que também é músico.

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Diante desta grandiosidade, um debate recorrente entre a classe artística musical é a presença de nomes da música sertaneja e de bandas de forró, conhecidas por tocarem “forró eletrônico”, nos principais polos do São João do Brasil como, por exemplo, Caruaru e Campina Grande. Desde os anos 1990, o chamado “novo forró” conquistou milhões de fãs e colocou grupos musicais como Mastruz com Leite, Magníficos, Limão com Mel, Calcinha Preta, Aviões do Forró e Garota Safada, no alto patamar da música pop brasileira.

Para o professor, esse novo movimento da época, apesar de surgir do forró tradicional de Luiz Gonzaga, traz como diferenciais temas e letras que vão deixar os dilemas do Sertão nordestino de lado e passam a abordar o amor, a paixão, a traição. “O ‘novo forró’ teve a proposta de estabelecer um ritmo moderno que não falasse de Sertão, da miséria, da ‘choradeira’. O forró tradicional se sentiu retraído quando o ‘forró pop’ ganhou espaço da escuta pop brasileira. Por isso, artistas decidiram puxar a bandeira do forró pé-de-serra e reagir ao movimento, causando uma certa polarização”, analisa Oliveira. 

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Dorgival Dantas enxerga a variedade de ritmos no São João de maneira positiva tanto para o forró quanto para a festa - Foto: Divulgação

O cantor Dorgival Dantas, conhecido como "O Poeta" por manter uma linha de composições majoritariamente que tratam de amor, sentiu de perto essa mudança e enxerga este momento de pluralidade no São João como agregador, tanto para o ritmo como para a festa. “Tudo que se some às festas para trazer mais diversidade e alegria é bem vindo. A música tem momentos. Quando ela cai no gosto popular, quando as pessoas se identificam com a letra, o gênero fica em segundo plano”, defende o dono do hit “Destá”.

Wesley Safadão, que conquistou milhões de fãs quando ainda liderava a banda Garota Safada e agora segue em carreira solo, também tem opinião similar à do colega e afirma que a diversidade de ritmos no São João não tira o valor do forró.  “Quanto mais pluralidade, mais gente se diverte, que é o que importa. Acho positiva essa variedade de ritmos no São João e acredito que isso não desvalorize o forró. Cada gênero tem seu espaço e em determinada época um está mais em evidência que outro. No São João, o forró domina”.

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Wesley Safadão, que já esteve a frente da banda Garota Safada antes de seguir em carreira solo, defende que o forró pode abrir espaço para outros gêneros no São João sem perder sua essência - Foto: Agencia Hangout - Divulgação

E o sertanejo?

O pesquisador da UFPE amplia ainda mais a discussão, quando observa que o ‘sertanejo pop’, assim como o forró das bandas, também ganhou notoriedade no São João. “O sertanejo também tem sua vertente de tradição, com um conjunto de símbolos que dão sentido à sua vida e à vida das pessoas, na maneira como discutem as relações e o amor. Precisamos discutir esses três ritmos não só como produtos de consumo, mas também como experiência humana”.

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A dupla sertaneja Zé Neto e Cristiano defende que o forró contribui muito para a música sertaneja - Foto: Divulgação

Entre os cantores sertanejos mais tocados na internet e com sucessos consolidados como “S de Saudade”, que tem mais de 88 milhões de registros no serviço de streaming Spotify, o cantor Cristiano, da dupla com Zé Neto, afirma que o São João, por ser uma grande festa, também abre espaço para outros gêneros musicais, sem alterar a essência do evento. “O forró contribui bastante com todas as duplas sertanejas. Os compositores dos nossos principais hits são nordestinos. ‘Bebemos da fonte’ de vários estilos musicais, é sempre importante buscarmos referências e novidades. A festa ficou mundialmente conhecida pelo forró, não faz sentido limitar o estilo durante o São João”.

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Em “Forró Desordeiro: para além da bipolarização ‘pé-de-serra’ versus ‘eletrônico’”, tese que defendeu no doutorado, Oliveira analisa a evolução na música popular para além dessas duas visões supostamente antagônicas. Ele afirma que todo gênero musical tem seus aspectos positivos e negativos e que eles precisam ser debatidos para contemplarem um maior público. 

“Não costumo fazer juízo de valor nesses ritmos. Faço uma análise para ver o que tem de aproveitável e de não aproveitável nessa experiência. O forró eletrônico, assim como o forró das bandas e a música sertaneja, vão ter pontos questionáveis como qualquer outro ritmo, mas, no meu entender, a eclosão dessas bandas foi importantíssima para vermos o reposicionamento da mulher na música, por exemplo. Com o ‘forró eletrônico’ e agora com o sertanejo, temos mais mulheres como cantoras e o empoderamento delas com relação às letras, o que a gente não via no tradicional”, compara Oliveira. Ele pontua ainda que, apesar do reposicionamento feminino, tanto o forró como o sertanejo poderiam abrir mais espaço para representantes LGBTs, de modo a conseguir abraçar um público mais diverso.

Empoderamento feminino musical

Se o forró eletrônico quis trazer o que tinha de mais contemporâneo na época em que surgiu, o sertanejo, nos últimos quatro anos, também inovou. A dominação dos homens na música foi cedendo e hoje o país foi conquistado por uma “onda feminina” que reivindicou espaço igualitário para a mulher nesse estilo musical. Cantoras como Marília Mendonça, Simone e Simaria, Maiara e Maraisa, Solange Almeida, Márcia Fellipe ganharam o gosto do público, dando voz a temas como sororidade, empoderamento feminino e amor próprio.

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Elba Ramalho é uma das poucas mulheres que conquistaram espaço no forró e hoje é referência para muitos artistas - Foto: Diego Nigro/Acervo JC Imagem

Dona de uma personalidade poderosa dentro da Música Popular Brasileira, Elba Ramalho pode ser considerada precursora desse movimento que hoje ganha notoriedade no sertanejo, junto às amigas de palco Anastácia, Marinês, Clemilda, Cecéu. “Realmente é curioso que o Brasil seja um país de tantas cantoras maravilhosas e que tenhamos poucas representantes cantando forró. É claro que eu tive Marinês como inspiração, mas os ritmos nordestinos são a minha primeira referência de tudo em termos de música”, reflete a artista.

Apesar de grandes nomes femininos dentro do forró como esses, o professor do Programa de Pós-Graduação de Música da UFPE Climério Oliveira analisa que o quantitativo de mulheres na música era baixíssimo, se comparado com os homens. “Se formos comparar, em números, a presença de mulheres e homens, elas não chegam a 2%. Com o tempo, as mulheres foram conquistando seu espaço e percebemos isso nos forró das bandas, onde elas estavam presentes como vocalistas”. 

Oliveira aborda ainda que a baixa quantidade de artistas femininas na música reverberava diretamente nas composições das canções, que geralmente objetificavam as mulheres. “A gente via muito nas músicas uma narrativa depreciativa da mulher. A partir do forró das bandas, podemos constatar uma mudança nesse cenário. Solange Almeida, na época que integrava os Aviões do Forró, cantava músicas que colocavam o homem em xeque, ao dizer que não ia se submeter ou que vai deixá-lo. Não tínhamos esse empoderamento antes, porque eram músicas compostas e cantadas por homens, que falavam sobre o ponto de vista deles. Agora isso mudou”.

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A cantora Marília Mendonça é uma das vozes contemporâneas que reverberam o protagonismo e empoderamento da mulher nos palcos e na música - Foto: Divulgação

Consagrada como a “rainha da sofrência”, o trabalho de Marília Mendonça nas músicas e palcos passou a fortalecer essa ideia da superação da mulher nos relacionamentos. Canções como “Supera”, “Vira Homem”, “Some Que Ele Vem Atrás” e “Passa Mal”, que acumulam milhões de streamings no Spotify, são a prova concreta dessa análise feita pelo pesquisador. 

Marília, questionada por trazer essa abordagem em suas músicas, comemora os sucessos e a conquista das mulheres na mídia musical. “Vejo todo esse movimento feminino com muito orgulho, porque tenho a consciência de que faço parte de tudo isso. Ao lado de outras grandes mulheres, nós chegamos para contar a nossa história, para mostrar que também temos as nossas versões. Aos poucos e com muito trabalho, conquistamos esse lugar e tenho certeza de que ainda temos muito a conquistar”.

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