Carla Patrícia Cunha: a comandante da PF em PE abre o jogo sobre poder, gênero e igualdade

Mirella Martins
Mirella Martins
Publicado em 08/03/2020 às 6:04
Carla Patrícia Cunha, superintendente da PF 
Foto: DAYVISON NUNES/JC IMAGEM
Carla Patrícia Cunha, superintendente da PF Foto: DAYVISON NUNES/JC IMAGEM

Carla - primeira mulher no comando da PF. Fotos Dayvison Nunes/JC Imagem

JORNAL DO COMMERCIO - Você é a primeira mulher no comando da Polícia Federal em PE. Em entrevista à época da posse, você contemporizou a conquista histórica ao dizer que nunca se sentiu prejudicada por questões de gênero na instituição. Por que, então, demorou 70 anos para isso acontecer aqui em Pernambuco?
CARLA PATRICIA - Na verdade, eu não senti preconceitos. Se eles ocorreram, eu ignorei solenemente. Eu tenho uma ressalva com essa expressão que se usa muito atualmente, empoderamento, que remete a alguém lhe conceder o poder, mas a gente já tinha. Eu acredito que é mais uma questão de ocupação de espaço. Na entrada da carreira, passam mais mulheres, não é o caso da PF, mas a medida que você vai crescendo na carreira, você vê menos mulheres ao seu lado. e isso tem o efeito cascata. A questão não foi de contemporizar a conquista, mas foi de atrela-la ao gênero. Tenha demorado é que há uma dificuldade realmente de as mulheres ocuparem os espaços porque é cobrado uma perfeição no trabalho, em casa e no aspecto físico. Essa busca pela perfeição torna a mulher mais culpada e infelizes e receosas de aceitar desafios.



JC - A senhora falou em culpa. Como lidar com esse sentimento sendo mulher, mãe de três filhos e superintendente da PF? Há uma evolução desse julgamento nos últimos anos? Tanto o julgamento feito pela própria mulher quanto da sociedade?
CARLA - Ainda vai levar um tempo em relação a esse julgamento. A culpa deve-se trabalhar em relação aos filhos. Eles têm direito a ter uma mãe plena e eu sou muito feliz no meu trabalho. Eu já tive esse feedback do meu filho mais velho quando ele disse para a do meio, durante uma viagem minha: ‘Você acha que ela seria feliz só sendo mãe?’. Eu até brinquei dizendo que ele era feminista; ser feminista é reconhecer as oportunidades são iguais e que os espaços tem que ser preenchidos por igual. Precisamos conscientizar nossos filhos que precisamos ser felizes. E está tudo certo também com que se satisfaz sendo só mãe.

JC - Sobre o fato de ser mulher: o que te ajuda e o que pode vir a ser um gargalo no teu cotidiano de trabalho? Já fez a diferença – para bem ou para mal - na profissão?
CARLA - Para o bem. Naturalmente, a mulher, em regra, tem mais inteligência emocional e se permite também a pensar no lado humano do outro, o que é fundamental. É o único bem que não se consegue nem vender.

JC - A senhora está numa atividade de alto risco. Como faz para proteger sua família? O que dá mais medo: o traficante ou bandido de colarinho branco?
CARLA - Eu não fico pensando no risco profissional. Eu procuro afastar bastante a questão pessoal e do trabalho no sentido de não me envolver nas investigações, não fazer julgamentos e agir com muita técnica e ética. Você não precisa ir além do que a lei manda.

JC - A mulher, muitas vezes, é rotulada como sexo frágil. A PF não divulga os números por gênero na corporação, mas sindicato aposta entre 15% a 25%. Como conviver harmonicamente numa instituição em que a maioria é homem e trabalhar num universo – como a PF – altamente masculinizado. Podemos dizer que a polícia é machista em algum momento?

CARLA - Antes de fazer direito, eu fiz eletrônica na escola técnica e já era um percentual muito restrito de mulheres. Via os meninos como aliados. Na PF, não posso dizer que senti o machismo. Nunca deixei de ter uma ideia aprovada ou um comando para não ser atendida. Acredito que há uma parte na instituição que requer uma força física maior e, nesse aspecto, inegavelmente, mas a maior parte das atividades da incorporação é ligada a investigação, inteligência e gestão. Eu gosto muito do conceito americano que ele diz que o líder ideal é aquele que gera mais empatia. Você tem que aprender a desenvolver o likeability.

JC - Com as redes sociais, há uma crescente onda sobre empoderamento feminino. Por outro lado, batemos recorde de número de feminicídio no País; somos o quinto no mundo. Como equilibrar isso?
CARLA - Eu sou um pouco “dinossaurica” em relação a redes sociais. Meu Instagram foi uma amiga com os filhos que criou só para eu consultar. Os dados sobre feminicídio no Brasil são assustadores. Eu vejo com tristeza e brutalidade esses números. Aumentou de 12 para 13 a quantidade de mulheres mortas por dia no Brasil. É uma quantia assustadoras. Aqui no Estado foi feita uma política que melhorou bastante esses números. Criou-se uma rede sistematizada. Não adianta apenas prender ou punir. Essa mulher precisa de uma libertação verdadeira. Porque sempre se vê como ela culpada. Tem um programa que foi desenvolvido no Mato Grosso para treinar profissionais de salão de beleza para ouvir os relatos e conseguir dar atenção para se descobrir vítima e necessita de apoio. Elas precisam se estabelecer profissionalmente. Já conversei com algumas pessoas porque precisa ter um incentivo de contratação dessas mulheres. São relatos que independem de classe social.

JC - A senhora foi uma das criadores do Departamento de Repressão ao Crime Organizado. Qual a importância desse debate hoje na sociedade? Ainda há um ambiente favorável ao combate à corrupção, ou isso foi arrefecido em função dos questionamentos que a Lava Jato vem enfrentando?
CARLA - Eu não criei o Departamento. Na PF, existe um dos cargos chamados de Delegacia Regional de Combate ao Crime Organizado da qual eu era a responsável. Normalmente é ocupado por homens porque lida com as operações no Estado. Eu fui a primeira mulher a comandar também e atualmente é outra colega; a única do Brasil. Quando criou-se no Estado, fui uma incentivadora. A PF não tem condição de combater a corrupção sozinha. O Estado precisa ter condições para ajudar e essas estruturas têm que ser equipadas e com treinamento especial com capacitação, imparcialidade e impessoalidade. Sobre a Lava-Jato, não acho que houve um arrefecimento. Posso falar por PE, a gente tem que pensar em estratégicas investigativas. Nem o Judiciário, nem mesmo a gente tem condições de ficar com uma investigação gigantesca.

JC - Como você vê a questão do uso político de instituições fortes, como a Polícia Federal. Isso prejudica o trabalho da PF?
CARLA - De certa forma, a PF está blindada em relação a essas interferências porque temos uma maturidade institucional onde só se consegue mandar quem tem legitimidade.

JC - Por muitos anos, a Polícia Federal em Pernambuco teve sua atuação fortemente associada ao combate ao tráfico de drogas. A senhora pretende manter essa linha ou vai eleger outras prioridades?
CARLA - Essa linha não tem como não ser prioridade. Historicamente, a erradicação da maconha. Recentemente, tivemos uma grande operação, em fevereiro, em que a novidade foi a prisão de 20 pessoas, além de bens materiais. Fora isso, tem um grupo especial voltado para o tráfico internacional. É o único do NE.

JC - A PF tem uma troca com polícias do mundo inteiro. Como a senhora avalia o nosso desempenho e expertises em relação às polícias de outros países. Tem algum país, em particular, que a senhora destaca como atuação exemplar?
CARLA - Na verdade, a PF tem atuação exemplar. Em relação aos EUA, eles têm agências federais e nós fazemos trabalhos de várias delas concentradas em uma única instituição. Em relação a parte tecnológica, estamos muito bem e desenvolvendo sempre. Essa estrutura investigativa que temos é enaltecida no mundo todo.

"A PF tem atuação exemplar", diz a superintendente

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