Temperamental, o chocolate é arte em forma de sabor

Igor Guaraná
Igor Guaraná
Publicado em 07/07/2018 às 7:00
Foto: Dayvison Nunes
Foto: Dayvison Nunes

Temperamental, apaixonante, avassalador. Esses são adjetivos que poderiam muito bem descrever uma pessoa, suas nuances e desvios. Mas, claro, estamos falando de um alimento inquietante e admirado por muitos ao redor do mundo, o chocolate. Não importa sua preferência. Amargo, ao leite, branco, meio amargo. Apesar de serem extraídos do mesmo fruto, o cacau, eles conseguem criar o seu próprio mundo e produzir sinfonias únicas ao paladar mais exigente.

Bebida dos Deuses

O chocolate é considerado hoje uma arte, mas nem sempre foi assim. Na verdade, podemos nos considerar pessoas de sorte, já que a iguaria como conhecemos só começou a ser explorada a partir do século 16, acredita? Os Astecas acreditavam que o senhor da lua e dos ventos gelados, teria roubado uma semente da árvore sagrada do reino do sol para dar aos homens. Eles usavam as sementes em rituais, como moeda de troca e recompensa para os soldados depois da guerra.

Não há uma exata localização dos primeiros indícios da fruta. Uns historiadores afirmam Amazônia, outros já consideram a Mesoamérica (região entre o sul do México e parte do Caribe). Os povos dessa região já trituravam as sementes de cacau e misturavam-nas com pimenta e milho, criando uma espécie de bebida espumosa nada agradável. Mesmo assim, eles acreditavam ser um presente dos deuses. Por volta de 1500, ele chega no continente europeu e começa a ser adoçado e moldado durante séculos, sendo transformado no que conhecemos hoje.

No Brasil, o fruto existia em abundância. Mas, na história recente existe uma praga chamada vassoura-de-bruxa, que consiste em um fungo que afeta os cacaueiros do país. Em 2000, a produção caiu para quase metade, diminuindo a participação do mercado mundial de 14,8% para 4%. Mas graças a tecnologia, os cacaueiros híbridos foram criados, tendo sua maior produção concentrada na Bahia.

Dayvison Nunes / JC

Universo Complexo

Alguns elementos da gastronomia podem traduzir muito bem a cultura de um povo. Além de explorar história e antropologia na sua essência. O chocolate é um universo tão expansivo quanto o vinho, cerveja, café, cana-de-açúcar e outros. Isso quem nos explica é a Chef Chocolatier Anna Corinna, que estudou afundo o chocolate e conhece a arte como ninguém. Com criações marcantes, como roupas e uma árvore comestíveis, ela consegue transparecer todo o perfeccionismo que o chocolate precisa.

Apaixonada desde criança, ela começou a trabalhar com o produto ainda nos anos 2000 e acredita que a adaptação para o paladar existente hoje, veio acompanhado da evolução no mundo da gastronomia. "O chocolate tinha muito mais gordura, muito mais açúcar, o fruto não tinha a qualidade que tem atualmente, era outro chocolate que nós consumíamos. Finalmente começamos a consumir chocolate com gosto de cacau. Antes, ele não tinha referência nenhuma com o sabor do fruto."

A história recente diz muito sobre o que costumávamos consumir, com notas mais acentuadas e o açúcar como coadjuvante, o chocolate vem se tornando o protagonista na arte. "Essa mudança apenas começou. Agora é que despertamos para os percentuais de cacau. Temos um novo olhar para essa área da gastronomia.", exalta a chef. Com uma cozinha "cheirosa", como ela mesmo denomina, os cheiros envolventes se sobressaem: açúcar, calda, chocolates, bolo no forno, combinações perfeitas.

Anna Corinna - Chocolatier
Dayvison Nunes / JC Imagem

Precisão e Delicadeza

Pâtissier, em tradução livre, confeiteiro (a). Arte levada com maestria e encarada com delicadeza e precisão. Perfeccionismo é a palavra chave da confeitaria e está lado a lado do chocolatier, buscando peso, temperatura, movimentos precisos. Tudo precisa ser medido, pesado e milimetricamente pensado. O tempo pode ser o seu inimigo, como também seu amigo. Uma única grama pode ser decisiva na transformação do seu doce em absolutamente nada ou uma obra prima.

Com todos esses critérios, a confeitaria é temida por muitos cozinheiros. Anna explica que a cozinha doce, diferente da salgada, é uma cozinha de pré-produção, de antecipação. "O pâtissier pede esse critério, essa antecipação, a delicadeza.", explica Anna. A fazenda João Tavares, localizado no sul da Bahia, persiste em um processo delicado. O fruto é colhido em mãos, aberto ainda debaixo das árvores e os tanques são redondos para uma fermentação por igual, despolpando completamente.

"É tudo uma questão de Química"

Temos vários tipos de cacau, mas três deles se destacam: criollo, forasteiro e trinitário. Tiramos a polpa (algo muito semelhante a graviola) e levamos para fermentação, restando a semente. Assim como o café, ela passa pela secagem e torrefação (nesta fase são dadas notas para o chocolate, mais amargo ou não), tira-se a pele e teremos o Nibs. Com um sabor amargo e cheiro forte do chocolate como o conhecemos, essa semente possui, assim como o amendoim, um óleo. Após sua prensa, eles são separados e com algumas substâncias a mais, surge o teor do cacau. Seja ele 50%, 70%, 80%...

Nibs
Dayvison Nunes / JC Imagem

O fascínio

"O fascínio do produto é justamente esse, você desvendar esse mundo. É muito fácil falar que você derrete e faz chocolate, mas acho que não é bem por aí. É transformação, química, é você criar um molde diferente e entrar num processo de estudo do que está fazendo. É mais que fascinante, é lindo!".

O trabalho é árduo e criterioso, quase temperamental e exigente. O chocolate não te deixará fazer o que bem entender com ele, tem suas próprias vontades e domínios. Ou você se adapta a sua realidade ou não conseguirá o resultado esperado. Derretê-lo até 50° graus, esfriar numa temperatura ideal, que girará em torno dos 29° graus, se for colocá-lo na geladeira, você precisará de uma temperatura equilibrada, entre outros fatores. São requisitos básicos na hora de sua manipulação. Colocando a química como o carro chefe de toda sua forma, resistência, brilho e perfeccionismo.

Mídia e Chocolate Branco

A tecnologia também vem somando pontos nesse procedimento. O chocolate belga é considerado um dos mais adorados do mundo e, de fato, ele é mais leve, mas na opinião da chocolatier tudo não passa de tecnologia e mídia. "Como posso ter o melhor chocolate do mundo se eu não tenho o fruto?", questiona. Bairrista, ela busca sempre os produtos originais do Brasil. Segundo leis brasileiras, o chocolate branco só é considerado chocolate quando possuir ao menos 23% de manteiga de cacau em sua composição. Alguns acham isso uma besteira, já outros ignoram esse fato e pretendem não o classificar como tal. "Eu considero! Isso é uma polêmica que não faz sentido. Só porque não tem torta de cacau eu não vou considerá-lo chocolate?", esclarece Anna.

Dayvison Nunes / JC

Sensações e benefícios

Chocolate começa seu derretimento a partir dos 35° graus, ou seja, gira em torno da temperatura corporal do ser humano, por isso, a especiaria dispara imediatamente a sensação de prazer na boca. Os antioxidantes presentes nessa delícia mundial, segundo estudos, são altamente beneficentes para o ser humano. Quanto mais puro, melhor! O cacau possui antioxidantes importantes para o nosso corpo. O problema fica por conta da adição de açúcar e outros ingredientes que podem deturpar seus benefícios.

Deliciosa Paixão Mundial

Presente em quase tudo, o chocolate é encantador e desafiante. Amado e temperamental, ele consegue provocar reações químicas dentro e fora do nosso corpo, liberando um prazer inigualável. "Ou você vence ele ou ele vence você", concluí Anna Corinna, que explica o quão fácil pode ser produzir e replicar receitas, principalmente agora com o advento da internet. "É preciso estudo para transformar o que você faz em excelência!". Se por um lado ele é audacioso, por outro, ele transmite uma delicadeza que conseguiu ultrapassar o tempo, as modificações e adaptações ao seu redor. Chocolate é paladar, é doce, branco, meio amargo, 70%, 50%, como diria a lenda Asteca, ele foi uma grata lembrança dos Deuses para nós. Então, aproveitemos o presente. E sim, muito obrigado pelo mimo.

 

 

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