As 'fake news' e a dificuldade de conter o fluxo de notícias falsas

Letícia Saturnino
Letícia Saturnino
Publicado em 13/07/2018 às 8:53
AFP PHOTO / Miguel SCHINCARIOL
AFP PHOTO / Miguel SCHINCARIOL FOTO: AFP PHOTO / Miguel SCHINCARIOL

As informações falsas estão saturando cada vez mais o debate político em todo o mundo, minando a já muito enfraquecida confiança nos meios de comunicação e se propagando mais do que nunca nas redes sociais.

O presidente americano, Donald Trump, popularizou o termo "fake news", usado como arma principalmente contra a imprensa, e cada vez mais empregado pelos políticos, em qualquer parte do mundo.

O conceito de "fake news" pode abranger qualquer coisa, de uma informação falsa até um erro involuntário, passando por uma paródia, ou por uma má interpretação.

Ao mesmo tempo, há cada vez mais informação falsa na Internet que busca influenciar os resultados eleitoral, como supostamente aconteceu com a vitória de Trump na corrida presidencial de 2016.

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Quase dois anos depois, o debate sobre o impacto das "fake news" na campanha permanece aberto.

Durante a disputa, foram vistos vários exemplos de enganos e notícias falsas, como uma sobre os supostos vínculos da candidata democrata Hillary Clinton com uma rede de estupradores de menores; e outra sobre o fato de que o papa Francisco teria dado seu apoio Trump, notícias que foram compartilhadas em massa e que, para alguns, poderiam ter favorecido a vitória de Trump.

A informação errônea teve um impacto significativo na decisão do voto, segundo os pesquisadores da Universidade Estadual de Ohio, que questionaram eleitores se haviam acreditado em algumas das falsas notícias.

Segundo os pesquisadores, é impossível demonstrar que a informação falsa tenha mudado o curso das eleições. Eles assinalam, porém, que era preciso uma mudança em apenas 0,6% dos eleitores, ou 77.744 pessoas em três estados-chave, para alterar o resultado do colégio eleitoral e, portanto, da eleição presidencial.

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Desde a eleição, Trump classificou de notícias falsas qualquer informação que não fosse de seu agrado, enquanto seus assessores se referiam a uma mistura de verdade e tergiversações, criando outro conceito: os "fatos alternativos".

Isso prejudicou a credibilidade dos meios de comunicação americanos, e há quem descreva a época atual como a "era da pós-verdade", um período sem uma realidade compartilhada.

"A verdade já não é considerada importante", afirma John Huxford, da Universidade Estadual de Illinois, pesquisador de informações falsas. "As mentiras e as invenções parecem visar à reputação de uma pessoa e sua destreza política no núcleo radical de seus partidários", explica.

Alguns estudos sugerem que há mais gente disposta a acreditar nas mentiras, porque o partidarismo aumentou. Por exemplo, uma pesquisa de 2017 mostrou que 51% dos republicanos acreditavam que o ex-presidente americano e democrata Barack Obama havia nascido no Quênia, apesar desse engano ter sido desmentido em inúmeras ocasiões.

Muita gente rejeita esta informação que acaba sendo "incômoda para seu conceito de si mesmo, ou sua visão de mundo", assinala um estudo dos acadêmicos Brendan Nyhan, do Dartmouth College, e de Jason Reifler, da Universidade de Exeter.

- Como as "fake news" transformam a percepção -

Segundo um estudo do instituto de pesquisas YouGov para o Reuters Institute, realizado em 37 países, a confiança nos meios de comunicação se mantém estável, em 2018, em 44%.

Mas o pesquisador do Reuters Institute, Nic Newman, advertiu: "Nossos dados mostram que a confiança do consumidor nas notícias continua sendo preocupantemente baixa em quase todos os países, geralmente devido aos altos níveis de polarização da imprensa e à percepção de uma influência política indevida".

Isso se agrava quando as autoridades propagam informações falsas. Em alguns países, pode-se ir muito além, como aconteceu na Ucrânia, onde as autoridades simularam a morte do jornalista russo Arkadi Babchenko em maio. Kiev se justificou dizendo que era uma forma de frustrar um plano real para assassinar o profissional da imprensa.

A simulação, difundida de boa-fé pelos meios de comunicação de todo o mundo, "é uma bênção para gente paranoica e os teóricos da conspiração. [...] Que um Estado jogue com a verdade dessa forma complica ainda mais as coisas", opina o secretário-geral da ONG Repórteres Sem Fronteira, Cristophe Deloire.

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A agenda política também pode atingir a credibilidade da mídia. Recentemente, o regulador francês do setor Audiovisual lançou uma advertência à redação francesa do Russia Today, acusando-a de tergiversar os fatos em uma notícia sobre a Síria.

Um dia depois, o comitê de vigilância russo ameaçou retirar a licença na Rússia do canal France 24, afirmando que teria violado uma lei sobre a imprensa introduzida em 2015 e que estabelecia um limite de 20% de propriedade estrangeira das empresas de comunicação na Rússia.

A confiança nos meios de comunicação tradicionais continua sendo maior do que nas redes sociais, segundo pesquisa do YouGov. Apenas 23% dos entrevistados disseram confiar nas notícias encontradas na Internet. Um total de 54% está de acordo, ou muito de acordo, que se preocupa com o que é real, ou falso, na Internet.

"O fato de que muita gente compartilha uma notícia tergiversada dá a ela credibilidade", destaca Huxford, da Universidade de Illinois. E um estudo do MIT publicado em março mostra que as notícias falsas se propagam mais rápido do que as verdadeiras no Twitter.

- Crise existencial das redes sociais -

O escândalo da Cambridge Analytica, em que o Facebook admitiu que os dados pessoais de cerca de 87 milhões de usuários foram usados pela consultoria britânica, somou-se às críticas feitas à rede social por difundir e amplificar uma grande quantidade de notícias falsas.

Nos Estados Unidos, a investigação do promotor especial Robert Mueller sobre os vínculos da Rússia com a campanha eleitoral de Trump colocou em evidência muitas contas do Facebook e páginas privadas administradas pela Internet Research Agency, uma "fábrica de trolls" com sede na Rússia.

O Facebook reconheceu em 3 de julho que era investigado por reguladores britânicos e americanos pelo escândalo da Cambridge Analytica, depois que seu presidente e fundador, Mark Zuckerberg, teve de dar explicações no Congresso dos Estados Unidos e no Parlamento Europeu.

Para mostrar sua disposição de mudar, o gigante americano fez em 2018 uma ofensiva técnica e de comunicação, iniciada em 2016, assinando acordos com mais de 25 meios de comunicação em 15 países, como Argentina, Estados Unidos e França.

O objetivo é que a mídia conhecida "avalie a exatidão dos artigos que circulam pelo Facebook e os aponte para a empresa, que depois poderá reduzir a distribuição dos mesmos [...] em uma média de 80%", se forem considerados falsos.

Um dos países, nos quais o Facebook investe para lutar contra a desinformação, é o Brasil, onde, em maio, ocorreu a greve em massa de caminhoneiros.

"Foram difundidas inúmeras mensagens de áudio com informações falsas que diziam, por exemplo, que era impossível encontrar carne no Rio, ou convocando concentrações [...] por parte de supostas lideranças sindicais", conta à AFP a fundadora da mídia de verificação de fatos Agência Lupa, Cristina Tardaguila. "Quando verificávamos junto às centrais sindicais, os famosos Pedro, ou Jorge, na origem dessas mensagens não existiam", destaca.

Essas mensagens não foram difundidas apenas no Facebook, lembra Tardaguila, como também no WhatsApp, que tem mais de um bilhão de usuários no mundo. Isso é algo que o estudo do YouGov já assinalava: diante da desconfiança na informação, o uso de redes como o Facebook para se informar parece retroceder, em benefício de serviços de mensagem, como o WhatsApp.

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Segundo Tardaguila, esse tipo de serviço será "a plataforma das 'fake news' durante as eleições presidenciais brasileiras de outubro". Para evitar esse fenômeno, a Agência France-Presse (AFP) anunciou em maio passado a criação de seu próprio blog de "fact-checking" em português, inglês e espanhol, com o apoio financeiro do Facebook.

Dedicado às notícias da atualidade, estará a cargo de jornalistas "comprometidos com a luta contra a divulgação de informações falsas no Facebook", segundo Tessa Lyons, encarregada de produtos do Facebook. Assim como sua casa matriz, o Facebook, o WhatsApp é acusado de favorecer a circulação de informações falsas, às vezes com resultados trágicos.

De acordo com a imprensa indiana, ao menos 25 pessoas morreram em um ano no país, devido a rumores que circularam por este aplicativo, que conta por mês com 200 milhões de usuários ativos nesse país. O WhatsApp também começa a anunciar medidas para prevenir a criação de perfis que divulgam conteúdos duvidosos.

Mas não vai muito além disso. No WhatsApp, as chamadas e as mensagens são encriptadas, e "nenhum terceiro, WhatsApp incluído, pode vê-las, ou ouvi-las", afirma o grupo.

O Google também anunciou em março uma série de projetos destinados a combater a desinformação e apoiar os meios de comunicação respeitados, com um investimento de 300 milhões de dólares em três anos. Seu motor de buscas deixa em destaque as verificações feitas pelos organismos de checagem de fatos.

-  O que vem a seguir? -

Apesar da multiplicação das iniciativas de verificação de fatos e dos primeiros passos dados pelos gigantes da Internet, os esforços para conter a proliferação de informações falsas continuam irrisórios.

Enquanto isso, as técnicas para se criar "fake news" se tornam mais sofisticadas com o desenvolvimento dos "deep fakes", vídeos cuidadosamente manipulados para que pareçam verdadeiros, mas que mostram fatos que nunca aconteceram.

Tecnicamente, ainda são muito difíceis de criar e ainda não tiveram um grande impacto. Com os avanços futuros, porém, poderão tornar ainda mais difusa a fronteira entre o verdadeiro e o falso na Internet.