As entranhas da luta para manter igrejas e templos abertos na pior fase da pandemia

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jamildo

Publicado em 06/04/2021 às 15:40
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O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu levar ao plenário da Corte na quarta-feira a discussão sobre a liberação de cultos e missas durante a pandemia. Trata-se de uma ação do PSD que pedia a suspensão do decreto do governo de São Paulo que estabeleceu a fase emergencial e vetou atividades religiosas.

No fim de semana, o ministro Nunes Marques concedeu liminar sobre outra ação e liberou a realização desse tipo de celebração. O processo a ser analisado pelos onze magistrados estava com Gilmar Mendes. Segundo ele, trata-se de "postura negacionista" autorizar cultos e missas neste momento. Nos EUA, em novembro, médicos listaram cinco motivos para vetar atividades religiosas na pandemia.

Por Valdemir França e Vagner França, em artigo enviado ao blog

O debate parece atrasado, coisa do século XIX, quando o Brasil migrou da monarquia para a república e consagrou, pela primeira vez, o princípio constitucional do Estado laico, isto é, neutro no que se refere a religião. Em outras palavras, o Estado estava se separando da igreja após séculos de parceria no que conhecemos por regime do padroado e, daí por diante, as pessoas estariam livres para seguir a religião que bem entendessem ou até não ter religião, como consagra o preâmbulo da Constituição Cidadã de 1988.

É fato que muitos resquícios do padroado, período em que Igreja e Estado eram unidos, permanecem vivos até os nossos dias, seja nos feriados religiosos ou na discreta mensagem nas cédulas do Real em que se lê a frase “Deus seja louvado”. Todavia, a questão tendia a não significar, necessariamente, projetos de poder político propriamente ditos, visto que a Igreja Católica, culto hegemônico, até agora, veda, institucionalmente, qualquer aproximação concreta com o Estado. O crescimento das comunidades católicas leigas, protestantismo e neo-protestantismo nos revela, cada vez mais, que essa verdade tem ficado menos absoluta...

O país vem constatando um aumento significativo de pessoas ligadas a grupos religiosos cristãos na política em esfera municipal, estadual e, principalmente, federal. Tais pessoas são eleitas por meio de votos diretos dos grupos religiosos que representam verdadeiros currais eleitorais e se formam grupos, “bancadas” para defender pautas diretamente voltadas para os interesses destes. Essa espécie de lobby religioso estimula a intolerância, desafia a liberdade religiosa e, consequentemente, esvazia o estado laico.

A força dos grupos religiosos na política tem crescido de forma tão significativa que é comum ouvirmos declarações do tipo: “Quero ver um presidente falando em línguas”, “O Estado é laico, mas o nosso governo é cristão” ou “indicarei um ministro terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal”. Tais posicionamentos já vêm se convertendo, há muito tempo, em ações concretas a favor deste grupo seja no polêmico perdão concedido às dívidas das Igrejas; seja na manifestação em frente aos hospitais para impedir o aborto legal de uma criança vítima de estupro, com participação de parlamentares inclusive; ou no surgimento de associações de magistrados evangélicos.

Falando em magistrados evangélicos, a ANAJURE, Associação Nacional de Juristas Evangélicos, acionou o STF questionando o fechamento de igrejas em estados e municípios face ao agravamento da pandemia da COVID-19. Em sua decisão, o Ministro Kássio Nunes Marques, primeira indicação do Presidente para ocupar posto na Suprema Corte, citou o transporte público, mercados e farmácias como exemplos de serviços essenciais que, respeitando os protocolos, seguiram funcionando durante a pandemia. Sua fundamentação não cita as escolas e universidades que seguem funcionando remotamente e as próprias Igrejas que, online, têm cumprido seu papel de levar orientação espiritual às pessoas nestes tempos tão difíceis. Ou seja, na prática, não há impedimentos às atividades religiosas de uma ou outra denominação, nem mesmo, obviamente, prejuízos à liberdade de culto. Ora, então o que se esconde por trás da decisão de permitir a abertura de igrejas e templos no pior momento da pandemia?

Juntando os pontos podemos concluir que a luta por manter igrejas abertas esconde alguns fatores a saber: o fluxo de pessoas impulsiona a entrada de dinheiro que garante a manutenção das estruturas e projetos; políticos comprometidos com grupos religiosos precisam garantir as casas de fé abertas como uma espécie de retorno aos fiéis pelos votos garantidos e por garantir; avanço das pautas religiosas em detrimento do Estado Laico que vão desde a ampliação das bancadas, passa por escolhas de mais ministros terrivelmente evangélicos e culmina, obviamente, com a reeleição do Presidente da República. Ou seja, tudo se resume a poder...

O aparelhamento do Estado pelo lobby religioso fica, ainda mais evidente, quando observamos que tanto a PGR (Procuradoria-Geral da União) quanto a AGU (Advocacia-Geral da União) solicitaram, junto ao Supremo, o fim das restrições aos cultos religiosos. À frente dos órgãos estão o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, e o Advogado-Geral da União, André Mendonça, respectivamente, ambos cotados à indicação para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que deixará o STF em julho. Neste sentido, as medidas pavimentam o caminho para o ingresso de ambos na Suprema Corte, mesmo que isso implique em mais mortes por Covid-19.

Como podemos ver, o sagrado foi descartado das entranhas do processo que visa, a qualquer custo, manter as Igrejas e templos em funcionamento. Trata-se na verdade, de uma espécie de darwinismo social em que, pela fé, as pessoas são levadas a acreditar que podem, apoiadas apenas em frágeis protocolos, promover aglomerações em lugares inadequados e, face à contaminação, perecerão acreditando ser a vontade de Deus, não a sede de poder dos homens.

Valdemir França – Historiador, mestre em Ciência da Religião professor convidado da Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Católica de Pernambuco.

Vagner França – Advogado, Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco e professor de Direito da Faculdade do Sertão do Pajeú.

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