Zika: depressão, ansiedade e estresse são comuns entre as mães de crianças com microcefalia

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 17/11/2019 às 17:10
Ávila, mãe de Ryquelme, interrompeu projetos para se dedicar exclusivamente ao filho, e sente as limitações (Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem)
Ávila, mãe de Ryquelme, interrompeu projetos para se dedicar exclusivamente ao filho, e sente as limitações (Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem) FOTO: Ávila, mãe de Ryquelme, interrompeu projetos para se dedicar exclusivamente ao filho, e sente as limitações (Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem)

Quatro anos após o nascimento dos primeiros bebês afetados pelo zika, especialistas lançam um olhar para um fenômeno que se torna cada vez mais visível: o abalo da saúde mental de famílias (especialmente as mães) de crianças com a síndrome congênita do vírus, cujo comprometimento mais conhecido é a microcefalia. Resultados de um trabalho iniciado em 2017, nas cidades do Recife e do Rio de Janeiro, financiado pela Wellcome Trust (fundação do Reino Unido), revelam que casos de depressão, ansiedade e estresse são bastante comuns entre mães de crianças pequenas no Brasil, independentemente de cuidarem de meninos ou meninas com algum tipo de deficiência. O destaque da pesquisa é que os níveis desses transtornos são maiores em mães de crianças comprometidas pela zika, em comparação com aquelas cujos filhos não foram afetados pelo vírus.

"Os dados que as pesquisas trazem sobre saúde mental procedem. Depressão, ansiedade e síndrome do pânico são problemas que nós, mães, enfrentamos. Temos muitas e novas demandas. O pior é sentir que não há perspectiva de um futuro melhor. A assistência, que já é precária, vai cada vez mais diminuindo. Já solicitei a órgãos públicos atendimentos psicológico e psiquiátrico”, frisa a presidente da União de Mães de Anjos (UMA), Germana Soares (Foto: André Nery/Acervo JC Imagem)

O estudo, publicado recentemente na revista científica Plos Neglected Tropical Diseases, mostra que 21% das 163 mulheres que têm filhos com zika congênita convivem com quadros graves ou extremamente graves de depressão. Já 31% têm quadros graves ou extremamente graves de ansiedade e 41% apresentam níveis na mesma intensidade alta de estresse. As taxas preocupam e são bem maiores do que as prevalências observadas na população brasileira em geral: 5,8% para depressão e 9,3% para ansiedade, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

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Entre as sete pesquisadoras que assinam o trabalho, três são vinculadas a instituições pernambucanas: Instituto Aggeu Magalhães (unidade da Fiocruz no Estado), Universidades de Pernambuco (UPE) e Federal de Pernambuco (UFPE). “Mães de crianças com síndrome congênita do zika foram mais propensas a apresentar sintomas de depressão, especialmente se tinham pouco apoio social”, escrevem as autoras.

"Ainda existem preconceito, falta de inclusão e de políticas públicas voltadas a pessoas com deficiência. Para as mães, torna-se difícil encarar essa realidade. Além disso, cabe a elas a missão de cuidar dos filhos por 24 horas. Dessa maneira, as mulheres não conseguem tirar um tempo para elas mesmas. Por isso, não podemos deixar de acolhê-las”, salienta a presidente da Aliança das Mães e Famílias Raras (Amar), Pollyana Dias (Foto: Sérgio Bernardo/Acervo JC Imagem)

Mãe de Ryquelme Kauan (o menino completa 4 anos em dezembro), a dona de casa Ávila Paloma Nejaim, 24, conta o quanto o fenômeno social da microcefalia e outras complicações associadas ao zika abalam a sua saúde mental. “Hoje em dia, sou uma pessoa nervosa e ansiosa. Vivo muito estressada, além de chorar por qualquer coisa. Se algo que for para o meu filho não dá certo, logo choro. Vivemos do BPC (sigla para Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social) para pagar todas as despesas de casa, e o meu marido está desempregado”, conta Ávila Paloma, que precisou parar de trabalhar depois que Ryquelme nasceu. “Há noites em que não durmo e vejo o dia raiar. Tempos atrás eu fazia terapia. Desde que engravidei de Davi (2 anos), não consigo mais ir à psicóloga. Preciso retomar”, complementa.

O relato da mãe de Ryquelme também ilustra os achados de uma pesquisa desenvolvida pela psicóloga Ludmila Menezes de Oliveira, mestre em Saúde Pública pela Fiocruz Pernambuco. A dissertação, intitulada A saúde mental das mães e outros cuidadores de crianças com síndrome congênita do zika, foi defendida em setembro deste ano e contou com a orientação da médica sanitarista Tereza Lyra, pesquisadora da instituição e uma das autoras do estudo citado no início desta reportagem.

"Houve sofrimento psíquico nas interações das mães e outros cuidadores com profissionais de saúde. A falta de informações disponíveis sobre a síndrome congênita do zika prejudicou essa relação e foi apontada como uma fonte de insegurança pelas famílias. Hoje as mães se inquietam para saber onde os filhos vão estudar, para que creche vão e que suporte irão receber”, diz a psicóloga Ludmila Menezes de Oliveira, mestre em Saúde Pública pela Fiocruz Pernambuco (Foto: Brenda Alcântara/JC Imagem)

“De forma geral, os resultados da minha pesquisa indicam que as famílias sofreram um grande impacto emocional com a síndrome congênita do zika. Elas foram afetadas pela relação com os profissionais de saúde, pela idealização de uma criança perfeita, pela definição social do que é a deficiência, pela divisão desigual de cuidados entre os gêneros e pelo sentimento de abandono quanto a ações institucionais. Esse ponto coloca em pauta a garantia de direitos sociais e a necessidade de pensar a deficiência enquanto uma questão eminentemente social”, destaca Ludmila. Ao longo da pesquisa, ela observou sofrimento psíquico nas interações das mães e outros cuidadores com profissionais de saúde, especialmente no momento de revelar o diagnóstico, que foi dado de forma inadequada, segundo as participantes do estudo.

“Entrevistamos mulheres e homens com participação na divisão das tarefas e, embora seja possível observar avanços em relação à atuação masculina no cuidado, as mulheres foram afetadas em diferentes níveis. Nenhum dos homens precisou largar suas atividades remuneradas, enquanto a maioria das mulheres interrompeu seus projetos de vida para uma dedicação exclusiva aos filhos”, frisa Ludmila. A psicóloga ainda ressalta que a fragilidade da participação do Estado sobrecarrega as famílias, especialmente as mulheres, dificultando o suporte familiar e trazendo problemas à saúde mental das mães. “Muitas participantes da pesquisa alegaram que tiveram suas demandas atendidas no início (da mudança do padrão de ocorrência da microcefalia), mas agora se sentem abandonadas porque o assunto não é mais tão presente na imprensa”, acrescenta Ludmila.