Fernando Figueira: um centenário guiado pela medicina social

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 03/02/2019 às 8:41
Fernando Figueira nasceu em 4 de fevereiro de 1919, em Figueira da Foz, Portugal, e se tornou uma das figuras mais importantes na saúde pública (Foto: Acervo pessoal)
Fernando Figueira nasceu em 4 de fevereiro de 1919, em Figueira da Foz, Portugal, e se tornou uma das figuras mais importantes na saúde pública (Foto: Acervo pessoal) FOTO: Fernando Figueira nasceu em 4 de fevereiro de 1919, em Figueira da Foz, Portugal, e se tornou uma das figuras mais importantes na saúde pública (Foto: Acervo pessoal)

A vida pautada na medicina social inspira esta série de reportagens, iniciada neste domingo (3) e que vai até a terça-feira, sobre o centenário de nascimento do médico e professor Fernando Figueira. Na segunda-feira (4), revelamos como os discípulos perpetuam as lições do mestre.

Nossa memória afetiva tem o poder de armazenar cenas, sentimentos e detalhes das lembranças significativas. Elas vêm e vão, mas nunca deixam de trazer um instante do passado permeado de satisfação. É assim que acontece quando alguém recorda momentos ao lado do pediatra e professor Fernando Figueira (1919-2003), que celebraria 100 anos de nascimento amanhã. Mestre representativo da medicina social (campo que busca compreender como as condições sociais e econômicas afetam a saúde), ele deixou um legado enraizado no acesso universal ao sistema público de saúde. “O exercício da medicina não deve se subordinar à crueza das leis econômicas. Deve ser regido pelas necessidades sociais de um povo em determinado momento histórico”, já dizia o professor, que multiplicou discípulos com preceitos que permanecem atuais.

Museu do Imip reúne importante acervo da história da medicina pernambucana e do fundador da instituição, Fernando Figueira (Foto: Felipe Jordão/JC Imagem)

Ao abraçar ensinamentos que caminhavam na contramão da polimedicação, a favor do aleitamento materno e do olhar holístico, Figueira se tornou exemplo de solidariedade, fraternidade e respeito a pessoas em situação de vulnerabilidade social. Esse foi o combustível que o fez erguer o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), principal obra do mestre criada em 1960 e que inicialmente recebeu o nome de Hospital Geral de Pediatria do Imip – naquela época, era a sigla para Instituto de Medicina Infantil de Pernambuco.

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“Aos poucos, ele foi desenhando uma assistência também para as mulheres, que aguardavam a consulta com os filhos. O professor viu que era preciso otimizar esse tempo para oferecer cuidado às mães. Começou, então, a treinar ginecologistas para oferecer preventivo e exames às mulheres”, conta o pediatra João Guilherme Alves, 64 anos, diretor de Ensino do Imip e um dos discípulos do professor. “Com ele, aprendemos que a vida tem valor independentemente da classe social. Era admirável o respeito dele com os pacientes”, recorda. Para o professor, a medicina precisava ser usada como ciência a serviço da população. Isso o fez extrapolar as fronteiras da pediatria: os cuidados ultrapassaram a faixa etária infantojuvenil e mergulharam num modelo de atenção integral para a família.

Maria Evangelina foi paciente de Figueira do dia em que nasceu aos 13 anos. Até hoje guarda caderneta de vacinação, relatório da visita na maternidade e prescrições de medicamentos. Foi no Parque da Jaqueira que ela o reencontrou há 20 anos e ele a reconheceu (Foto: Filipe Jordão/JC Imagem)

“Meus avós confiavam demais nele. Mesmo sendo pediatra, dava orientações a adultos. Ele cuidou de mim do nascimento aos 13 anos. Tio Fernando (como o chamava) tinha o dom de criar relação de confiança com os pacientes”, diz a servidora pública Maria Evangelina Guerra, 48 anos, que guardou caderneta de vacinação, relatório da visita que o professor fez na maternidade sete horas após o nascimento dela e fichas com requisição de medicamentos. Uma frase com a letra dele se destaca: “Ler cuidadosamente instruções”. Essa é uma das orientações que remetem a um ilustre pensamento de Figueira: “Um médico tem profunda responsabilidade sobre a vida dos que o procuram”. A reflexão faz o baú de memórias afetivas de Vanjinha (como era chamada pelo professor) ser remexido. “Há 20 anos, eu o reencontrei caminhando no Parque da Jaqueira (Zona Norte do Recife). Ele me reconheceu e fez elogios porque me achou bem. Era fabuloso”, conta Maria Evangelina, que – neste centenário – está com o coração cheinho de boas lembranças ao revisitar raízes da infância.

Mamadeira e leite em pó eram proibidos nas maternidades

À frente da Secretaria de Saúde de Pernambuco, no governo Eraldo Gueiros (1971-1975), Fernando Figueira tomou uma iniciativa que é relembrada e contada por muitos de seus discípulos. Naquela época, ele proibiu a distribuição de bicos, mamadeiras e latas de leite em pó, por parte da indústria de alimentos infantis, nas maternidades. A decisão, que causou polêmica, virou um marco na história mundial da amamentação e se tornou aplaudida pela comunidade científica, que hoje reconhece os benefícios do aleitamento materno. A proibição ocorreu pela Portaria 99, publicada no Diário Oficial de 3 de dezembro de 1974. Para justificar a medida, o professor alegou que o leite materno é insubstituível como alimento de proteção aos recém-nascidos.

No Imip, mães recebem orientações sobre a importância do aleitamento materno (Foto: Filipe Jordão/JC Imagem)

Foi um grito de guerra que atingiu multinacionais. Essa é apenas uma das lutas que Figueira empreendeu para ratificar a conduta de um homem que não se deixava levar por interesses de mercado e que tinha atitudes além do seu tempo. Hoje o Banco de Leite Humano do Imip é referência no incentivo ao aleitamento e representa a coroação pela batalha contra o desmame.

“Ele era destemido, inconformado com as injustiças sociais. Tinha uma visão de vanguarda e um espírito empreendedor à causa pública”, relata o médico Antonio Carlos Figueira – o quinto dos nove filhos do professor e que nasceu no ano de criação do instituto (1960). A profissão de médico também foi abraçada pelo filho caçula, Fernando Augusto Figueira, 39 anos, cirurgião cardiovascular e coordenador do Serviço de Transplante Cardíaco do Imip. A filha Maria Cristina Figueira se dedica à coordenação do curso de enfermagem da Faculdade Pernambucana de Saúde, que surgiu, em 2005, da aliança entre a Associação Educacional Boa Viagem e a Fundação Alice Figueira, organização de apoio ao desenvolvimento do Imip. “Mesmo os filhos que não são da área da saúde, contribuem direta ou indiretamente na manutenção da obra social deixada pelo professor”, destaca Fernando.

Na pauta de desejos, vários Imips instalados

Silvia Rissin assumiu a presidência do instituto em agosto de 2018 após ter ficado à frente da Fundação Alice Figueira por 22 anos (Foto: Filipe Jordão/JC Imagem)

Quem conviveu no dia a dia com Fernando Figueira sabe que o Imip se tornou o oxigênio de que o professor precisava para se manter vivo. A declaração é da nutricionista Silvia Rissin, que assumiu a presidência do instituto em agosto do ano passado, depois de ter ficado à frente da Fundação Alice Figueira por 22 anos. Para ela, a expansão do Imip se entrelaça com o próprio desenvolvimento da saúde pública em Pernambuco e com a história de vida do professor que continua a inspirar gerações de médicos. “Ele me convocou para trabalhar no Imip, mesmo sem saber em que setor eu ficaria nem o que faria exatamente, mas queria que eu arrecadasse recursos necessários para dar continuidade ao trabalho do instituto”, recorda Silvia.

Salatiel Farias foi motorista do professor por uma década (Foto: Filipe Jordão/JC Imagem)

A presidente da instituição conta que o sonho de Figueira era ver outros “Imips” espalhados, descentralizando a assistência à saúde, para que as famílias não percorressem longas distâncias para receber atendimento. “Esse desdobramento do instituto hoje pode ser representado, por exemplo, pelas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e postos de saúde que estão pelo Estado. E aos poucos, o Imip foi crescendo sem se limitar à assistência, mas também oferecendo ensino e pesquisa.

O amor do professor pela medicina social plantada no Imip também é narrado pelo motorista da presidência, Salatiel Farias, 65 anos, que está há mais de três décadas no instituto. “Comecei dirigindo as ambulâncias, e ele sempre pediu para eu acompanhá-lo nas viagens que fazia de carro. Fiquei como motorista dele por uns dez anos. Era um homem muito bom, que só queria viver para ajudar as pessoas. Lembro uma vez que ele viu uma senhora à toa no Cais de Santa Rita (bairro de São José, no Centro do Recife), sensibilizou-se e pediu para ver do que ela estava precisando. Essa é só uma das muitas lembranças que tenho do quanto ele fazia o bem”, conta Salatiel, que guarda na memória o dia em que o Imip perdeu um pai ilustre. “No dia em que ele faleceu, eu estava na residência com ele. Passei mal, a minha pressão subiu. Até hoje só guardo boas lembranças dele.”

Francisca Sales foi secretária do professor Fernando Figueira e permanece no Imip (Foto: Filipe Jordão/JC Imagem)

Há cinco décadas no instituto, a secretária Francisca Sales, 86 anos, também só guarda recordações de bons momentos ao lado do professor. “Eu o conheci quando trabalhava na pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, mas ele fez questão de me convocar para o Imip. Ofereceu até um salário mais alto. Ele era assim mesmo: gostava de ajudar”, conta.

O professor faleceu aos 84 anos, no dia 1º de abril de 2003. A despedida foi marcada por muitas homenagens feitas por funcionários da instituição, dos amigos, autoridades políticas e de saúde, entidades médicas, moradores da comunidade dos Coelhos (bairro onde fica o instituto) e pacientes do hospital que tanto o admiravam.

Missa

Nesta segunda-feira (4), dia em que Fernando Figueira completaria 100 anos, o Imip celebra uma missa, às 10h, em memória ao seu fundador, reverenciado pelas obras, ideais e luta em prol dos mais necessitados. A celebração será comandada pelo bispo auxiliar da arquidiocese de Olinda e Recife, dom Limacêdo Antonio da Silva. Já na próxima quarta-feira, também às 10h, será realizado o lançamento do Selo Especial Fernando Figueira, em parceria com os Correios, em solenidade na Sala de Defesa de Tese do instituto. Ao longo deste ano, serão feitas diversas homenagens, como lançamento de livro, conferências e congressos.

Assista ao programa na TV JC: