Chicungunha: o que se sabe (e o que está em estudo) sobre o elo entre reumatismo e o vírus

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 26/08/2017 às 14:23
Uma parcela dos que pacientes que adoecem por chicungunha e cronificam (sintomas com longa duração) desenvolverá doença reumatológica. Isso corresponde a 5% (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)
Uma parcela dos que pacientes que adoecem por chicungunha e cronificam (sintomas com longa duração) desenvolverá doença reumatológica. Isso corresponde a 5% (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem) FOTO: Uma parcela dos que pacientes que adoecem por chicungunha e cronificam (sintomas com longa duração) desenvolverá doença reumatológica. Isso corresponde a 5% (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

O primeiro surto de chicungunha passou na maior parte do Brasil, consumiu a qualidade de vida de pelo menos 14 mil pernambucanos (se forem considerados só os casos confirmados da doença de 2015 até o momento, segundo dados oficiais) e outros milhares de brasileiros, além de ter deixado rastros que ainda perduram em até metade dos doentes infectados pelo vírus. Muitos ainda sentem dores intensas nas articulações e vivem alimentando a esperança de que possam se ver livres do sofrimento. A boa notícia é que, com tratamento adequado, algumas pessoas atingidas na epidemia inaugural começam a melhorar após meses de dores insuportáveis.

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“A cada semana, em um grupo de dez pacientes atendidos numa manhã, dou alta para dois ou três. É como se, neles, a infecção viral fosse mais arrastada e demorasse a ir embora. Aqueles que são mais graves, com um grau maior de inflamação nas articulações, ainda não estão controlados e são tratados como pessoas com artrite reumatoide”, diz a reumatologista Cláudia Marques, do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Assista ao programa na TV JC sobre o tema:

A reumatologista Cláudia Marques é coordenadora do estudo Coorte ChikBrasil, que já avaliou 732 pessoas que tiveram chicungunha com manifestações articulares crônicas. “Aquelas que passam mais de três meses doentes após o início da infecção têm um quadro de dores no ombro, joelho e tornozelo. Às vezes, apresentam tendinites. Uma pequena parcela dos que cronificam (sintomas com longa duração) desenvolverão doença reumatológica. Isso corresponde a 5%, com base num trabalho francês”, informa Cláudia.

"Vejo que muitos pacientes têm melhorado com o tratamento. É isso que espero para mim. Quero voltar a ser ativa”, conta a zeladora Rejane Maria do Nascimento, 52 anos, que teve desencadeado um quadro de artrite reumatoide após ser infectada por chicungunha (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

Nesse grupo de pacientes, está a zeladora Rejane Maria do Nascimento, 52 anos, que teve artrite reumatoide desencadeada após adoecer pelo vírus da chicungunha. Os primeiros sintomas apareceram há um ano e três meses. “Fui dormir bem. Quando acordei, não conseguia mais colocar os pés no chão. Desde então, onde tem juntas e osso, sinto dor. Os dedos dos pés se afastaram, e não consigo fechar as mãos”, conta Rejane, que faz tratamento via infusão de medicamento biológico no Ambulatório de Acometimento Articular da Chicungunha do Hospital Getúlio Vargas (HGV), no Cordeiro, Zona Oeste do Recife. “Às vezes, vem um desespero. Mas espero ter mais qualidade de vida com as novas medicações e o acompanhamento da equipe do hospital.”

"O reumatologista deve ser procurado se o paciente, a contar do início da chicungunha, passar dos três meses com sintomas”, orienta a reumatologista Cláudia Marques (Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem)

Pelo serviço especializado do HGV, que completou um ano de funcionamento, já passaram 229 pacientes, que fazem parte do estudo Coorte ChikBrasil. “Investigamos o universo que tem manifestações neurológicas e articulares, além de analisar quantos vão desenvolver artrite reumatoide e, entre estes, qual o percentual que vai precisar de drogas imunobiológicas. Sem dúvida, o sintoma que mais se expressa, desde o início da chicungunha, é a artrite (inflamação da junta). Menos comum é a artrite reumatoide, que advém da desordem imunológica trazida pela chicungunha”, salienta a reumatologista Lilian Azevedo, coordenadora do Ambulatório de Acometimento Articular da Chicungunha do hospital.

A médica participou, na última sexta-feira (25), do programa Casa Saudável na TV JC e tirou as dúvidas dos internautas sobre o tema, ao lado da técnica da Gerência de Controle das Arboviroses da Secretaria Estadual de Saúde (SES) Daniela Bandeira.

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Sobre o elo entre chicungunha e reumatismo, há quem questione se a infecção pelo vírus seria isoladamente a causa da doença reumatológica. A explicação vem de Lilian Azevedo: “Às vezes, a chicungunha mexe tanto com o sistema imunológico a ponto de desencadear outras doenças que talvez não fossem vistas como uma complicação da enfermidade. É como se o vírus mexesse tanto com o sistema autoimune que servisse como um gatilho para doenças como artrite reumatoide e espondilite anquilosante (doença reumática de caráter inflamatório que tem como principal sintoma a dor nas costas)”. Ou seja, essas enfermidades estavam latentes numa pessoa que poderia estar predisposta do ponto de vista imunológico. A chicungunha, então, foi o estopim para despertar um reumatismo que vivia às ocultas no organismo.

"A epidemia de chicungunha deu uma acalmada, mas a gente vive atenta por causa da possibilidade de um segundo surto", alerta a reumatologista Lilian Azevedo (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

“Obviamente que, para as doenças reumáticas, há outros gatilhos, mas talvez elas ficassem ‘silenciosas’ a vida toda (se não fosse a chicungunha)”, esclarece Lilian. Após o início da infecção viral, a pessoa já tem um quadro crônico se entrar no terceiro mês apresentando sintomas, como as inflamações nas juntas. É a partir desse período que a consulta com o reumatologista é primordial.

“Um médico pode fazer avaliação muito detalhada, especialmente para investigar se o quadro de chicungunha evoluiu como doença reumatológica”, frisa Cláudia Marques, que permanece em alerta para o risco de novos surtos. “Prevemos que, em 2018, provavelmente teremos epidemia, se não houver erradicação do mosquito.” Nunca é demais relembrar a lição: não vale baixar a guarda contra o Aedes aegypti.

A importância da fisioterapia

"Para os pacientes infectados pela chicungunha, a fisioterapia não é um tratamento alternativo; é coadjuvante. As pessoas precisam dessa modalidade de tratamento desde o início da doença. Na fase aguda (primeiros 15 dias de infecção), às vezes o paciente não consegue realizar a fisioterapia porque está muito debilitado. Ele sequer aguenta sair da cama. Mas, na fase subaguda (a partir do 15º dia) e principalmente na fase crônica (a partir do 3º mês com sintomas deixados pela chicungunha), a fisioterapia é fundamental. A drenagem linfática também é importante para a retenção de líquido que a gente observa nas pernas e pés dos pacientes", destaca a reumatologista Lilian Azevedo.

Confira a lista completa de unidades que oferecem serviços de fisioterapia na rede pública de saúde do Recife, inclusive para pessoas que adoeceram por chicungunha. É importante lembrar que o paciente precisa ser encaminhado por médicos das unidades de saúde família.

- Clínica de Fisioterapia do Recife - Bairro de Santo Amaro

- Clínica Luiz Borges - Bairro de Paissandu

- Fisioecia.com - Bairro da Madalena

- Hospital Infantil Maria Lucinda - Bairro de Parnamirim

- Instituto de Reabilitação Infantil - Bairro de Santo Amaro

- Unidade Pública de Atendimento Especializado (UPAE) Deputado Antônio Luiz Filho - Bairro do Arruda

- Policlínica Lessa de Andrade - Bairro da Madalena

- Policlínica Agamenon Magalhães - Bairro de Afogados

- Policlínica Amaury Coutinho - Bairro de Campina do Barreto

- Policlínica Salomão Kelner - Bairro da Tamarineira

Saiba mais sobre reumatismo

As doenças reumáticas formam atualmente, segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), um grupo de mais de 100 enfermidades, que comprometem ossos, cartilagens, articulações e músculo. A maioria apresenta o mesmo sintoma inicial: dor e inflamação nas articulações. A evolução de cada uma das doenças reumáticas, assim como as suas consequências para o organismo, é distinta.

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Como os sintomas dos diferentes tipos de reumatismos podem se confundir entre si e também com dores comuns do dia a dia, a recomendação da SBR é procurar um especialista quando a dor e o inchaço nas juntas persistirem por mais de quatro a cinco semanas.

A maioria das doenças reumatológicas, segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), começa com uma simples dor nas juntas. Pode ser uma tendinite, um problema de coluna ou até uma artrite reumatoide (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

Boa parte das doenças reumáticas atinge pessoas de qualquer idade, incluindo jovens e crianças (como a artrite reumatoide infantojuvenil - doença reumática que tem início antes dos 16 anos e que apresenta sintomas como rigidez matinal, dificuldade de andar e de participar das brincadeiras).

Apesar de crônicas, as doenças reumáticas têm tratamento, que pode melhorar e restabelecer a qualidade de vida do paciente. O diagnóstico é feito através da avaliação acurada do médico especialista, do histórico familiar do paciente e de exames complementares (exame de laboratório e métodos de imagem). O reumatologista é o profissional médico treinado para diagnosticar e tratar uma doença reumática. O diagnóstico precoce pode ser a diferença entre uma vida normal e uma vida com limitações e incapacidade funcional.

Doença reumatológica X Reumatismo crônico pós-chicungunha

Dos pacientes infectados por chicungunha e cronificam, quem tem chance de desenvolver uma doença reumatológica? A reumatologista Cláudia Marques responde: "Esses números existem em trabalhos feitos nas epidemias de outros países. No Brasil, a gente não tem ainda esse universo porque precisamos analisar os dados do estudo (Coorte ChikBrasil) em andamento. Nos outros países, o percentual de pacientes que cronificam fica em torno de 30% a 50%". Ou seja, dos que adoecem pelo vírus, quase a metade vai evoluir cronicamente. E isso significa que vão desenvolver doença reumática? "Não. Significa que esses pacientes vão manter as dores articular e muscular, as chamadas alterações musculoesqueléticas, por mais de três meses depois do início da chicungunha. A gente chama esses casos de reumatismo crônico pós-chicungunha", explica Cláudia. Até agora, sabe-se que apenas uma pequena parcela dos que cronificam (5%, segundo um estudo francês) vão ter a doença reumatológica desencadeada.

Chicungunha é mais grave em quem apresenta doença reumatológica antes da infecção pelo vírus?

"Observamos que pacientes com reumatismo diagnosticado antes da chicungunha têm sintomas (da infecção pelo vírus) mais leves e com duração mais curta do que na população que não apresenta doença reumatológica prévia. Provavelmente porque esses pacientes já são tratados para artrite. E isso diminuiria o impacto da chicungunha", frisa a reumatologista Cláudia Marques. Ela acrescenta, contudo, que o grupo de pesquisadores que coordena também observou (poucos) pacientes que pioraram da doença reumatológica prévia após adoecerem por chicungunha. "Foi uma minoria e, nesses casos, tivemos que trocar o tratamento. Mas ainda não sabemos exatamente o mecanismo disso. Contudo, se fosse generalizar, diria que esses pacientes com doença reumatológica prévia não apresentam um quadro de chicungunha tão expressivo como nas pessoas sem doença reumatológica antes de adoecer pelo vírus", complementa.

Tira-dúvidas

Sobre o elo entre chicungunha e reumatismo, tema abordado não apenas aqui no blog, mas também na TV JC e no Jornal do Commercio, vários leitores e internautas enviaram perguntas, ao longo dos últimos dias, pelas redes sociais (como mostra uma das publicações no Facebook compartilhada abaixo). Selecionamos os principais relatos e convidamos a reumatologista Lilian Azevedo, coordenadora do Ambulatório de Acometimento Articular da Chicungunha do Hospital Getúlio Vargas (HGV), para tirar as dúvidas.

Confira as respostas de Lilian Azevedo:

– Tive chicungunha em março de 2016 e fiquei com muitas dores em meus pés. Parei de usar saltos porque doíam demais e passei a usar rasteiras. Senti melhoras após evitar os saltos, mas infelizmente agora estou com problema nas mãos; acredito que está relacionado à chicungunha porque os meus punhos começaram a inchar, meus dedos formigam e ficam dormentes 24 horas. Estou com suspeita da síndrome do túnel do carpo. Antes só sentia dores nos punhos; agora estou com todos esses desconfortos. Agora preciso fazer eletroneuromiografia pra comprovar a síndrome do túnel do carpo e, segundo o ortopedista, fazer uma cirurgia nas mãos. Necessito de mais informações e ajuda.

Lilian Azevedo: A síndrome do túnel do carpo é a neuropatia (condição que afeta os nervos periféricos) mais frequente da chicungunha; pode surgir com ela ou simplesmente ser agravada (pelo vírus). É preciso ver o exame e o paciente para se analisar se há necessidade de indicação de cirurgia. A pessoa com a síndrome do túnel do carpo geralmente sente bastante dormência nas mãos, principalmente à noite. O sintoma pode ser acompanhado de uma diminuição da força, relatada frequentemente ao se abrir portas, garrafas e torneiras. Quando a síndrome do túnel do carpo está associada à infecção por chicungunha, é preciso acompanhar o paciente para ver se os sintomas desaparecem com o tempo. Caso não, um ortopedista precisa avaliar se existe necessidade de cirurgia.

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Entre os sintomas da síndrome do túnel do carpo, estão sensação de formigamento nas mãos e de dormência (Foto: Pixabay)

* Saiba mais: a síndrome do túnel do carpo é uma neuropatia causada pela compressão do nervo no canal do carpo, localizado entre a mão e o antebraço

– Mesmo que demore, os sintomas passam e/ou tem cura? Ou a pessoa vai sentir as dores para sempre?

Lilian Azevedo: Sim, há estudos que falam em até dois anos de sintomas.

– Além da fisioterapia, a acupuntura é uma opção para o paciente durante e pós-chicungunha?

Lilian Azevedo: Sim, em todas as fases.

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– E a osteopatia ajuda no tratamento?

Lilian Azevedo: Não muito, pois a osteopatia corrige mais transtornos posturais.

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– Para quem tem fibromialgia, as dores ainda são piores, pois parecem um agravamento, que mexe com o emocional do paciente. É isso mesmo?

Lilian Azevedo: Infelizmente é isso mesmo, pois a fibromialgia intensifica as dores.

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– Estou há um ano e nove meses de muito sofrimento, peregrinando pelos reumatologistas, ortopedistas, fisioterapeutas, médicos de mãos... E a resposta deles: ‘não sabemos tratar da doença como um todo. É tudo muito novo’. Nunca tive artrite, artrose ou qualquer doença reumática. Até minha visão está comprometida. Minhas mãos já não fecham mais; tenho dores horríveis em todas as articulações. Não consigo andar direito. E agora? O que será que devo fazer? Ficar sofrendo o resto da minha vida? Me ajudem, por favor!

Lilian Azevedo: Difícil esse caso... Cada reumatologista tem uma experiência diferente. Na minha prática clínica, tem sido mais animador o curso dessa doença.

– Meu pai desenvolveu a síndrome de Haglund quando adquiriu a chicungunha. Há dias que, ao acordar, para sair da cama, sente muitas dores. Nesses dias, não pode dirigir. Há relatos dessa síndrome pós-chicungunha?

Lilian Azevedo: Há relatos sim, mas é uma complicação ainda mais rara.

– Eu tive e ainda sinto dores nos pés. Uma dúvida: ainda podemos adoecer novamente, em caso de um novo surto?

Lilian Azevedo: Não. A pessoa só tem chicungunha uma vez. Pelo menos, não se identificou uma mutação do vírus, como foi com a dengue.

– Eu tinha dores nas pernas e tomo o cloreto há um mês, e as dores sumiram. O que dizer do cloreto de magnésio?

Lilian Azevedo: Não existe evidência sobre o cloreto para doença alguma. Não é recomendado.

– Eu não aguento tanta dores; só Deus sabe o que passo. Sou uma pessoa sem perspectiva de vida. Afetou até a minha visão. Os olhos podem ser afetados pela chicungunha?

Lilian Azevedo: Podem ser sim. Existem vários relatos de acometimento ocular. A pessoa deve ser acompanhada por um oftalmologista especialista no assunto.

– Tive a chicungunha em dezembro de 2015 e pensei que fosse ficar debilitada para o resto da vida. Em setembro do ano passado, em exames de rotina, descobri que precisava tomar vitamina D diariamente. Depois de um tempo tomando, as dores que sentia de manhã ao levantar e também as dores nas mãos sumiram. A vitamina D ajuda?

Lilian Azevedo: A vitamina D tem um importante papel no sistema imunológico. Então, ela pode ter sido útil sim.

Acompanhe a interação no Facebook sobre a relação entre chicungunha e a síndrome do túnel do carpo: