Nova ferramenta de engenharia genética é discutida pela ONU

Letícia Saturnino
Letícia Saturnino
Publicado em 06/12/2017 às 16:49
Foto: Pixabay
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Para alguns, um meio de erradicar mosquitos transmissores de doenças, para outros, um passo na direção do caos ecológico. O "direcionamento gênico" é discutido por um grupo de trabalho convocado esta semana em Montreal, como parte da Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade.

Para aqueles que a defendem, esta técnica, que consiste em modificar o DNA dos seres vivos, permitiria eliminar espécies invasoras que dizimam a vida selvagem em ecossistemas. Também poderia controlar mosquitos transmissores de doenças, como a malária, que matou quase meio milhão de pessoas no ano passado, principalmente na África.

Já outros suspeitam dos argumentos sanitários para mascarar objetivos industriais e militares, além de alertarem para mudanças no equilíbrio ecológico. Em Montreal, representantes de países e especialistas discutem a crescente capacidade da ciência para manipular genomas. Um relatório deve ser elaborado para os 195 Estados da Convenção.

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Entre todas as técnicas, o "direcionamento gênico" (gene drive, em inglês) ainda é pouco conhecido, mas conta com poderosos apoiadores - incluindo o Exército americano, por meio de sua Agência para Projetos de Pesquisa de Defesa (Darpa, na sigla em inglês), e a Fundação Bill e Melinda Gates - que investiram centenas de milhões de dólares nestas pesquisas nos últimos dois anos.

A Fundação Gates pagou US$ 1,6 milhão para a empresa de comunicação Emerging Ag para mobilizar pesquisadores contra um projeto de moratória sobre essas pesquisas elaborado por mais de 100 ONGs. "O objetivo era que nos aproximássemos dos decisores políticos", explicou à AFP a vice-presidente de estratégia da Emerging Ag, Isabelle Cloche.

- Aplicações militares? -

O direcionamento gênico permite que um gene seja transmitido entre gerações. Se, por exemplo, este gene produz apenas machos, uma espécie pode rapidamente diminuir. Pela primeira vez, esta técnica foi identificada como capaz de salvar a fauna selvagem ameaçada por espécies invasoras, em um estudo publicado em 2014 por Kevin Esvelt, do MIT.

Mas hoje Kevin Esvelt acredita que estava errado ao levantar tais esperanças, e que recorrer ao direcionamento gênico para preservar a natureza é muito perigoso. "Você nunca deve conceber e divulgar um (tal) sistema capaz de se espalhar além da área alvo", disse ele à AFP. No entanto, ele não exclui um uso limitado desta técnica para outros fins, particularmente contra certas doenças.

Dominar a engenharia genética para expulsar os mosquitos da malária na África é precisamente o objetivo da Target Malaria, um consórcio de pesquisa apoiado pela Fundação Gates. "A imposição de uma moratória sobre tais inovações promissoras em uma fase tão precoce de desenvolvimento seria prejudicial e irresponsável", reagiu a Target Malaria em dezembro, quando as ONGs lançaram sua campanha.

O pesquisador Todd Kuiken, da North Carolina State University, e membro do grupo reunido em Montreal, concorda. "Do ponto de vista científico, impor uma moratória geral sobre a pesquisa sobre o direcionamento gênico não tem sentido para mim", diz. "Você não pode aprender nada, se você não estudar", completou.

Mas ele rejeita qualquer financiamento de origem militar. Quando sua universidade recebeu US$ 6,4 milhões da Darpa para um programa dedicado a roedores invasores, Kuiken se retirou. "É possível que o trabalho da Darpa force o campo da biologia sintética para aplicações militares", diz ele.

Temores compartilhados por Jim Thomas, que também faz parte da reunião de Montreal e membro da ONG ETC Group, que monitora o impacto das tecnologias emergentes e obteve uma série de e-mails e documentos sobre este assunto, graças ao "Freedom of Information Act" americano.

"O fato de o desenvolvimento da engenharia genética ser atualmente em grande parte financiado e estruturada pelo Exército americano desperta questões alarmantes", considera. Mas, segundo um porta-voz da Darpa, a abordagem do Exército é, acima de tudo, preventiva, frente "aos riscos apresentados pelo rápido desenvolvimento e democratização de ferramentas de edição genética".

"Aplicações - positivas e negativas - podem vir de pessoas, ou Estados, que operam fora da comunidade científica e das regras internacionais", explicou o porta-voz Jared Adams, por e-mail à AFP, referindo-se à alocação por parte de sua agência de cerca de US$ 100 milhões para este tipo de projeto.

"Cabe à Darpa realizar estas pesquisas e desenvolver tecnologias que possam nos proteger contra o uso indevido", justificou.