Vale do Silício busca paz com Trump em meio à ressaca eleitoral

Letícia Saturnino
Letícia Saturnino
Publicado em 12/11/2016 às 10:04
Jeff Bezos, fundador da Amazon.com. Drew Angerer/Getty Images/AFP
Jeff Bezos, fundador da Amazon.com. Drew Angerer/Getty Images/AFP FOTO: Jeff Bezos, fundador da Amazon.com. Drew Angerer/Getty Images/AFP

Por Sophie Estienne (AFP)

A surpreendente vitória de Donald Trump deixou o setor de tecnologia nos Estados Unidos em uma posição desconfortável, obrigado a se entender com um futuro presidente que não queria e com o risco de enfrentar políticas desfavoráveis.

"Felicitações a @realDonaldTrump. Eu lhe dou minha mente mais aberta possível e lhe desejo grande sucesso em seu serviço ao país": a mensagem conciliadora tuitada na quinta-feira (10) pelo fundador da Amazon, Jeff Bezos, ilustra a tentativa do setor de virar a página.

Até agora, o que Bezos propunha era se livrar do candidato republicano "reservando-lhe um lugar no foguete da Blue Origin", sua outra empresa ativa na área de transporte espacial.

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Salvo no caso do investidor Peter Thiel, o Vale do Silício era em peso pró-Hillary Clinton e não antecipou a vitória de Trump, às vezes abertamente acusado de incompetência.

Agora, os executivos de Tecnologia pregam a paz.

"O único meio de avançar é avançar junto", escreveu o CEO Tim Cook aos funcionários da Apple, enquanto que, no Facebook, Mark Zuckerberg afirmava que "criar o mundo que queremos para nossos filhos" é uma tarefa "maior do que qualquer presidência".

Isso não impede que o setor tecnológico seja um dos mais afetados em Wall Street na ressaca eleitoral: na quinta-feira (10), o índice Dow Jones bateu um novo recorde, enquanto Amazon, Alphabet (Google), Apple, Facebook e Microsoft - cotados no Nasdaq - perderam de 2% a 4%.

Mais acesso privilegiado

"Eu não falaria em vingança", mas, nos discursos da campanha, "não se vê ventos favoráveis para essas grandes empresas tecnológicas", reconheceu Art Hogan, da Wunderlich Securities. Donald Trump já criticou e ameaçou diretamente Amazon e Apple, por exemplo.

Além disso, "as empresas tecnológicas foram as grandes beneficiárias da globalização" e correm o risco de sofrer, particularmente no caso de medidas protecionistas, lembrou Jack Ablin, do BMO Private Bank.

O impacto da presidência Trump continua incerto, porém, "as questões tecnológicas não estavam no topo da agenda" durante a campanha, avalia a professora de Ciência Política Melinda Jackson, da Universidade de San José, na Califórnia.

TOPSHOT - Apple CEO Tim Cook (L) shows dancer Maddie Ziegler (R) a new iPhone during a product demonstration at Bill Graham Civic Auditorium in San Francisco, California on September 07, 2016.   / AFP / Josh Edelson CEO da Apple, Tim Cook. Foto: AFP / Josh Edelson

Enquanto Hillary Clinton passou algum tempo no Vale do Silício - sobretudo, para angariar fundos -, Donald Trump não teve interesse em conversar com os líderes do setor e não precisava de suas doações, lembra Melinda Jackson.

"Trump se concentrou amplamente em outras questões que não a tecnologia e a inovação", fazendo comentários "ocasionalmente muito críticos" sobre o setor, e com "poucas posições políticas articuladas além da tributação e do comércio", resume a Information Technology and Innovation Foundation (ITIF).

O presidente dessa fundação, Rob Atkinson, não acredita que haverá uma "punição" em relação aos gigantes tecnológicos, mas que, "a partir de agora, eles serão como qualquer outro setor". "Não será mais a posição privilegiada que eles tinham no governo Obama", completou Atkinson.

"Tendo dito isso, não podemos devolver a América à sua grandeza sem um setor tecnológico forte", ponderou, destacando que as medidas evocadas por Donald Trump não são exatamente desfavoráveis.

As restrições sobre os vistos aos imigrantes podem ser "problemáticas" para essas empresas, que empregam enormemente engenheiros estrangeiros, por exemplo, apontou o presidente da ITIF.

O candidato presidencial republicano Donald Trump fala durante uma reunião da campanha dentro do centro dos eventos da arena 7 de Cabarrus em Concord, Carolina norte o 3 de novembro de 2016. / AFP PHOTO / Logan Cyrus Presidente eleito dos EUA,  Donald Trump, em comício durante a campanha. Foto: AFP PHOTO / Logan Cyrus

Além disso, Atkinson vê uma fonte de conflito potencial sobre a segurança pública e sobre a criptografia dos dados. Em contrapartida, uma redução de impostos para as empresas - em particular quando elas repatriam dinheiro para os EUA - seria "um grande negócio" para os gigantes tecnológicos, sobretudo, para a Apple.

Com Trump no poder, "a fabricação nos Estados Unidos é de novo atraente", o que pode beneficiar empresas com usinas no país, como Intel, ou Tesla, concorda o analista Trip Chowdhry, da Global Equities Research.

Afastamento dos consumidores

Além das decisões que serão tomadas em Washington, Melinda Jackson evoca "um efeito colateral do engajamento político mais ativo" do setor tecnológico.

"Eles poderiam ter de se preocupar, não apenas de dar as costas para o próximo presidente, mas, talvez, também para alguns consumidores", afirmou Melinda.

O resultado das urnas mostrou o quanto o setor se desconectou desses consumidores, os quais diz conhecer tão bem, em função dos dados coletados on-line.

Para Melinda, a eleição de Trump põe em xeque a confiança nos "big data" e nos modelos algorítmicos abraçados pelo setor tecnológico. Expõe ainda a "bolha" em que vive o Vale do Silício, com seus altos salários, seu ambiente cosmopolita e bastante liberal, o qual "tende a ser uma espécie de elite isolada do resto do país".