Vivemos uma epidemia da solidão imposta? Entenda por que o tema é um problema de saúde pública

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 27/01/2018 às 16:23
É hora de pensar na prevenção da solidão imposta e de todas as suas consequências nefastas para a saúde – muitas delas comprovadas pela ciência (Foto ilustrativa: Pixabay)
É hora de pensar na prevenção da solidão imposta e de todas as suas consequências nefastas para a saúde – muitas delas comprovadas pela ciência (Foto ilustrativa: Pixabay) FOTO: É hora de pensar na prevenção da solidão imposta e de todas as suas consequências nefastas para a saúde – muitas delas comprovadas pela ciência (Foto ilustrativa: Pixabay)

O ser humano é muito afetivo e, por isso, nós precisamos da relação com o outro para nos constituirmos e nos renovarmos. Inspirado nesse raciocínio, o psicólogo Spencer Júnior sublinhou, no programa Casa Saudável, da TV JC, na sexta-feira (26), os motivos pelos quais as consequências da solidão, especialmente no envelhecimento, têm preocupado profissionais de saúde. O tema ganhou o centro das atenções este mês, depois que o Reino Unido escolheu uma ‘ministra da solidão’ (a deputada Tracey Crouch) para combater o surto de tristeza da região. Mais de 9 milhões de britânicos alegaram, em pesquisa recente, sentir solidão.

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No Brasil, cuja população envelhece aceleradamente (de 1940 a 2016, a expectativa de vida ao nascer aumentou, no País, em mais de 30 anos – e hoje é de 75,8 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os efeitos da solidão também causam inquietação e estimulam a reflexão neste Janeiro Branco, campanha abraçada pelos psicólogos para conscientizar sobre a importância do bem-estar emocional.

"Sou muito ativa e, por isso, nunca estou sozinha", conta Zulmira, que sabe como a interação com o próximo se transforma na própria base da vida (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

“A solidão ocasional, aquela que vem por escolha, é benéfica. A questão é que não devemos desacoplar a solidão de envelhecimento. À medida que o indivíduo ganha extensão de tempo (de vida), ele perde suporte social em profundidade”, frisa Spencer, que explica como a solidão cresce proporcionalmente à longevidade. “A pessoa vê a morte dos entes queridos, experimenta a subtração dessa rede social e vai naturalmente perdendo contatos. Essa é uma solidão de ordem imposta, que difere da solidão opcional”, acrescenta o psicólogo, que é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco.

Assista ao programa sobre o tema na TV JC:

É esse isolamento que tira o sossego dos brasileiros, inclusive dos mais jovens. O medo de perder a proximidade com os semelhantes foi citado por 45% dos participantes de uma pesquisa divulgada recentemente pelo Instituto Qualibest, em parceria com a Pfizer, com 703 adultos de todo o País. O estudo, intitulado Como os brasileiros encaram o envelhecimento, sugere que o receio da solidão pode ser traduzido como um temor de não ser notado com o avançar da idade.

"A solidão pode ser um fator preceptor de doenças psiquiátricas, inclusive de pensamento suicida. É preciso sensibilizar políticas públicas para esse cenário", diz o psicólogo Spencer Júnior (Foto: Bobby Fabisak)

“Quando o idoso percebe que não é bem aceito, principalmente por causa das limitações que acompanham o envelhecimento, a tendência é que ele se sinta envergonhado em meio a uma sociedade que comunga características diferentes das suas. Naturalmente, ele vai se isolando, priva-se de estímulos e vivencia um empobrecimento social, cognitivo e físico”, ressalta Spencer, que faz parte do comitê científico da Associação de Terapias Cognitivas do Estado de Pernambuco.

Glória Santiago sabe como podemos ter poucos amigos e nos sentirmos totalmente amparados, pois o que vale não é a quantidade de pessoas que nos cerca, e sim a qualidade de trocas emocionais que fazemos com quem está ao nosso lado (Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem)

Evitar o isolamento social é reconhecido pela ciência como uma das medidas que podem diminuir a chance de desenvolvimento da doença de Alzheimer. A constatação foi feita por um estudo publicado na revista científica The Lancet. “Sabemos que o isolamento social pode contribuir para uma série de consequências negativas na saúde física e mental. Por isso, precisamos pensar na solidão no âmbito da saúde publica”, destaca o psiquiatra Rodrigo Silva, associado à Sociedade Pernambucana de Psiquiatria.

"É necessário oferecer suporte social aos idosos. Por isso, é importante as autoridades perceberem que vale intervir para essa população não se sentir isolada”, frisa o psiquiatra Rodrigo Silva (Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem)

O médico ainda alerta para o risco por que passamos atualmente: sentir-se isolado mesmo no meio da multidão. Por outro lado, o contrário também vale: podemos ter poucos amigos e nos sentirmos totalmente amparados, pois o que vale não é a quantidade de pessoas que nos cerca, e sim a qualidade de trocas emocionais que fazemos com quem está ao nosso lado. A jornalista aposentada Glória Santiago, 70, sabe como tudo isso faz sentido. Ela mora sozinha, mas não se sente solitária. “Tenho muitas atividades para fazer. Dou palestras na igreja, cujo ministério da maturidade é coordenado por mim. Organizo programações, reuniões e viagens. Precisamos estar sempre com a cabeça ocupada, e isso é essencial para não darmos espaço à solidão.”

Assim como Glória, a professora de educação física aposentada Zulmira Lima, 71, mora sozinha e segue o mantra: “Devemos encarar a vida como ela é e, diante de desafios, acreditar que tudo sempre melhora”. Mesmo há cerca de dois anos sem jogar basquete num grupo de veteranas do esporte, ela conta que isso não a impede de viajar com as colegas que o esporte lhe trouxe. “Estou me organizando para voltar a jogar e a estudar, duas atividades que fazem muito bem. Sou muito ativa e, por isso, nunca estou sozinha”, conta Zulmira, que sabe como a interação com o próximo se transforma na própria base da vida.

Um não à solidão imposta

A visão benéfica da solidão, quando experimentada para trazer calma e paz espiritual, mostra que a condição de ficar só por algum tempo nos leva a um encontro com nós mesmos. E isso é ótimo (Foto ilustrativa: Pixabay)

O que não faltam são pesquisas que examinam o impacto negativo da solidão imposta (longe de ser ocasional, é aquela que não vivenciamos por escolha) na saúde. Ao reconhecer os efeitos desse isolamento, o Reino Unido considera o problema uma questão de Estado. Em relatório, o governo frisa como o isolamento é mais do que um problema social, pois está associado a doenças cardiovasculares, a vários tipos de demência, a quadros de depressão e ansiedade.

A visão benéfica da solidão, quando experimentada para trazer calma e paz espiritual, mostra que a condição de ficar só por algum tempo nos leva a um encontro com nós mesmos. E isso é ótimo.

O conflito vem quando o isolamento não é fruto do nosso desejo e, assim, tende a ser psicologicamente doloroso. É hora de pensar na prevenção da solidão e de todas as suas consequências nefastas para a saúde – muitas delas comprovadas pela ciência.