"As pessoas sabem muito sobre suas profissões, mas quase nada sobre si mesmas", diz psiquiatra

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 29/09/2017 às 7:10
Para especialista, ensinar desde a infância estratégias para lidar com as emoções pode ajudar a formar adultos mais fortes e resilientes (Foto ilustrativa: Pixabay)
Para especialista, ensinar desde a infância estratégias para lidar com as emoções pode ajudar a formar adultos mais fortes e resilientes (Foto ilustrativa: Pixabay) FOTO: Para especialista, ensinar desde a infância estratégias para lidar com as emoções pode ajudar a formar adultos mais fortes e resilientes (Foto ilustrativa: Pixabay)

Nesta sexta-feira (29), chegamos à reta final do Setembro Amarelo, mês de conscientização sobre o suicídio. Em 2016, a campanha atingiu mais de 50 milhões de pessoas em todo o País, segundo dados da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Especialistas alertaram para diversos fatores, como a importância da prevenção, da empatia, dos sinais de alerta, a relação com os transtornos mentais e de que maneiras os distúrbios psiquiátricos atingem variadas faixas etárias. A saúde mental em universitários, principalmente a dos estudantes de medicina, é um dos cenários que preocupam especialistas.

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O tema foi objeto de estudo do psiquiatra Leonardo Machado, professor de psiquiatria e psicologia médica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no doutorado em neuropsiquiatria e ciências do comportamento da instituição. Em Transtornos mentais comuns e bem-estar subjetivo em estudantes de medicina: uma intervenção preventiva baseada na psicologia positiva, apresentado em agosto passado, o pesquisador pontua como a busca por ajuda profissional é baixa em estudantes de medicina com algum transtorno mental. A proposta da tese foi atestar como algumas estratégias podem ser usadas para a diminuir o estresse emocional dessa população.

Imagem do psiquiatra Leonardo Machado (Foto: Diego Nigro / JC Imagem) Psiquiatra Leonardo Machado desenvolveu pesquisa sobre transtornos mentais e bem-estar entre estudantes de medicina da Universidade Federal de Pernambuco (Foto: Diego Nigro / JC Imagem)

Entrevista com o pesquisador

Casa Saudável - Como surgiu o interesse em investigar o bem-estar mental de estudantes de medicina?

Leonardo Machado - Assim que comecei a dar aulas para o curso de medicina da UFPE, chamou-me atenção o número de estudantes que me procuravam pedindo alguma ajuda em relação a problemas psicológicos, psiquiátricos e/ou de relacionamento que enfrentavam. Muitos vinculados ao próprio curso de medicina, mas também outros às suas vidas extra-medicina. Além disso, tenho percebido em mim mesmo uma personalidade mais engajada. Parece-me, assim, que uma coisa levou a outra. Além disso, percebi cedo que cuidar da saúde pública é também cuidar daqueles que serão os futuros médicos. Um médico que se sente bem consigo mesmo tem mais chance de prestar um serviço de qualidade à população. Isso vale para todas as outras áreas da saúde; porém, como dou aulas para o curso de medicina, acabei me envolvendo mais com os estudantes de medicina.

CS - Quantas pessoas estão envolvidas na pesquisa? E quanto tempo durou o estudo?

LM - Nossa pesquisa de doutorado teve duas fases. Na primeira, no primeiro semestre de 2016, 423 estudantes de medicina da UFPE (ou seja, 74,6% dos estudantes matriculados nos quatro primeiros anos, que é a fase inicial antes do chamado internato) responderam a um questionário composto por várias escalas. A ideia foi avaliar fatores associados ao bem-estar subjetivo e à ansiedade nesta população e verificar se eles precisavam ou não de uma intervenção preventiva. Na segunda fase, no segundo semestre de 2016, transformamos as aulas do eixo humanístico em um treinamento emocional baseado na psicologia positiva com 34 estudantes do sétimo período e comparamos os resultados com 31 estudantes do sexto período que receberam aulas convencionais.

CS - Quais foram os principais transtornos mentais relatados pelos estudantes?

LM - Como não fizemos entrevistas pessoais, mas questionários com escalas, não podemos falar em diagnósticos definitivos. No entanto, as escalas avaliavam em geral o risco para transtornos de ansiedade (sobretudo transtorno de ansiedade generalizada), transtornos depressivos e somatização. Ao lado disso, avaliamos o bem-estar subjetivo (quantidade de emoções positivas + nível de satisfação com a vida).

CS - Quais as causas que, na sua impressão, podem influenciar o desencadeamento dos primeiros sintomas de adoecimento psíquico desses alunos?

LM - Fatores da própria personalidade, como elevado nível de auto-cobrança; fatores ligados ao curso de medicina, como percepção dos alunos de elevada cobrança por parte dos professores; e o fato de alguns precisarem se mudar e morar longe da família para fazer medicina. Além disso, na atualidade, o número de jovens com pouco suporte social fazendo medicina também aumentou, geralmente oriundos das cotas. Nas aulas, até hoje não sei a priori quem é aluno que entrou no curso pelas cotas ou não. Nunca perguntei e igualmente nunca percebi uma diferença entre o nível dos questionamentos e do conhecimento. No entanto, quando passei a atender e a conversar com esses jovens, percebi que muitos precisam fazer um desdobramento maior do que eu fiz, por exemplo, quando era estudante de medicina da Universidade de Pernambuco (UPE). Alguns precisam trabalhar, outros já eram pai/mãe, alguns moram muito longe e dependem do transporte público. Tudo isso também conta. Devo dizer que aprendi e aprendo muito com os jovens estudantes de medicina em geral, e em particular com esses que têm maiores dificuldades socio-econômicas.

CS - Foi criado um ambulatório específico no HC para atender estudantes de medicina com algum transtorno psiquiátrico. Como funciona o serviço?

LM - Criamos o PROGad (Programa Galdino Loreto). Em 2016 comecei a atender no Hospital das Clínicas (HC) sem uma sistemática maior alguns estudantes que me procuravam. Logo percebi a necessidade de uma sistematização. Formalizei, então, em janeiro de 2017, esse projeto de extensão. Convidamos os residentes de psiquiatria do HC, onde sou preceptor, para participar fazendo atendimento em psiquiatria e psicoterapia cognitiva sob minha supervisão. Eles aceitaram e gostaram da ideia. Além desses atendimentos individuais, já tivemos um grupo de terapia cognitiva para ansiedade com 14 estudantes e o primeiro colóquio sobre saúde mental de estudantes de medicina. Nas duas primeiras semanas de outubro realizaremos uma oficina de mindfulness com cerca de 20 participantes. O nome do programa é uma homenagem ao psiquiatra e ex-professor titular da UFPE, Galdino Loreto. Ele, que era neto de um ex-governador de Pernambuco, Sérgio Loreto, foi pioneiro no Brasil no cuidado ao estudante universitário em geral e ao de medicina em especial, começando a fazer este tipo de atendimento em torno de 1958.

CS - Como funcionam as técnicas da "psicologia positiva"?

LM - A psicologia positiva guarda alguma semelhança com a psicoterapia cognitiva no sentido de propor a realização de técnicas simples, porém com bom impacto, além da escuta. O foco primordial da psicologia positiva é estimular emoções positivas, gratidão, "forças" e qualidades no sentido de promover satisfação com a vida, sentido existencial e resiliência. O foco dela, portanto, não é diminuir primariamente sintomas psiquiátricos ou emoções negativas. Isso pode vir como consequência. Dessa maneira, a psicologia positiva pode ser uma ferramenta de prevenção em saúde mental uma vez que ela promove fatores de bem-estar.

CS - Os docentes também estão enfrentando uma "fase" de muito adoecimento mental? Por que?

LM - Se levarmos em conta a população de professores do Brasil como um todo eu posso dizer sem alarde e sem exagero que passamos por uma situação de calamidade pública do ponto de vista de saúde mental. Na atualidade, poucos são os professores de escolas públicas do ensino básico e médio que conseguem chegar ao final da carreira sem um adoecimento psíquico. Sendo que nesta população, o adoecimento em geral está vinculado a fatores da própria profissão. Certamente, por isso, o número de readaptações nesta população é grande. Com relação aos professores do ensino superior, a situação é menos calamitosa, entretanto não muito menos preocupante. Baixos salários, condições adversas de trabalho e a total desintegração da relação de respeito para com a figura de autoridade que o professor exerce acabam sendo os principais fatores associados ao adoecimento. É imperioso cuidar dessa população se desejamos cuidar do Brasil.

CS - Quais seriam as principais estratégias que poderiam ser adotadas pra prevenir o "surgimento" dos transtornos mentais em universitários, principalmente do curso de medicina?

LS - Disciplinas eletivas ou obrigatórias (ainda não temos a resposta cientificamente embasada para isso), treinamentos emocionais baseados na psicoterapia cognitiva e/ou psicologia positiva, ou oficinas de mindfulness e/ou meditação podem ser caminhos. Além disso, modificações curriculares merecem ser pensadas no sentido de encontrarmos maneiras de avaliar o aluno globalmente e com uma lógica não-concurseira. Devo dizer que ensinar nas escolas as crianças e os adolescentes sobre suas emoções, pensamentos e comportamentos é uma estratégia que deve ser posta em prática. As pessoas sabem muito sobre suas profissões, mas quase nada sobre si mesmas. Os pais não aprenderam, por isso elas não conseguem aprender com eles, nem nas escolas. Acabam aprendendo com as "pancadas" da vida e/ou nos consultórios de psicoterapia.

CS - E, uma vez que o aluno já está doente, como o meio acadêmico pode agir para intervir na terapêutica do aluno, já que a universidade é o local onde o estudante passa boa parte do dia?

LS - Criar programas de assistência psicológica e psiquiátrica nas universidade; e incentivar uma convivência mais empática dos alunos entre si e entre esses e seus professores parecem ser caminhos importantes.