Estudo investiga mecanismos genéticos da cárie

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 06/06/2017 às 11:22
Pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo descrevem associação entre polimorfismos em microRNAs com níveis de um peptídeo antimicrobiano na saliva (Foto: Divulgação)
Pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo descrevem associação entre polimorfismos em microRNAs com níveis de um peptídeo antimicrobiano na saliva (Foto: Divulgação) FOTO: Pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo descrevem associação entre polimorfismos em microRNAs com níveis de um peptídeo antimicrobiano na saliva (Foto: Divulgação)

Da Agência Fapesp de notícias

A digestão dos alimentos começa com a mastigação e a ação da saliva. Além de facilitar a digestão, a saliva tem em sua composição substâncias antimicrobianas que agem no combate a microrganismos que podem causar doenças na boca, entre elas a cárie. Um destes agentes químicos é a betadefensina (DEFB1), um peptídeo antimicrobiano produzido a partir de informações transmitidas pelos microRNAs associados ao gene que dá origem ao peptídeo – o microRNA constitui uma classe de RNA não recombinante com papel fundamental na regulação da expressão gênica.

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Um trabalho que acaba de ser publicado na revista Caries Research, publicação científica focada exclusivamente na pesquisa da cárie, investigou a associação do polimorfismo genético na betadefensina e microRNA 202 com a variação dos níveis do antimicrobiano e o aparecimento da cárie. A pesquisa reuniu uma equipe de 12 profissionais de São Paulo e do Rio de Janeiro. A primeira autora é Andrea Lips (o estudo derivou do seu trabalho de doutorado), da Universidade Federal Fluminense, e a pesquisadora responsável pelo trabalho é a sua coorientadora de doutorado, Erika Calvano Küchler, Jovem Pesquisadora-FAPESP do Departamento de Clínica Infantil - Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). “É o primeiro artigo em Odontologia a estudar o polimorfismo genético em microRNA”, disse Küchler, que conduz a pesquisa “Avaliação do papel do estrógeno no desenvolvimento dentofacial”, apoiada pela FAPESP.

“A cárie é uma doença multifatorial complexa e que podemos prevenir. Nosso interesse neste trabalho foi tentar entender quais seriam os mecanismos moleculares, principalmente aqueles de origem genética, envolvidos no aparecimento da cárie em crianças”, disse.

O polimorfismo genético designa a existência de diferentes alelos (variações) de um mesmo gene. As formas mais comuns de polimorfismos genéticos são deleções, mutações e substituições das bases que compõem o código de cada gene. Quando há polimorfismo, a informação que o gene carrega é alterada, com consequências (ou não) para a sua ação no organismo.

Os pesquisadores queriam entender se existiria uma relação entre os níveis de betadefensina na saliva – e, portanto, maior ou menor suscetibilidade ao aparecimento da cárie – com a ausência ou a presença de polimorfismo tanto no gene responsável pela produção de betadefensina (DEFB1) quanto no microRNA 202, que atua na expressão daquele gene.

“Em alguns estudos, o polimorfismo no gene que codifica a betadefensina tem sido associado à cárie dentária em humanos. Nossa hipótese partia da ideia de que a falha na ação antimicrobiana das betadefensinas que previnem a formação da cárie poderia estar ligada a malformações (polimorfismos) no gene DEFB1 ou no microRNA 202”, disse Küchler.

“Nosso trabalho consistiu em duas partes. A primeira visou replicar os estudos entre o gene da betadefensina e a suscetibilidade à cárie na população brasileira, para verificar se obteríamos os mesmos resultados. A segunda parte deu um passo adiante, ao fazer uma análise para detectar a associação ou não entre polimorfismo no microRNA 202 e a suscetibilidade ao desenvolvimento da cárie”, disse.

Os níveis salivares dos peptídeos de betadefensina hBD1, hBD2 e hBD4 foram acessados a partir de amostras de saliva de 168 crianças (92 meninos e 76 meninas) entre 2 e 12 anos, da pré-escola e do ensino fundamental de Nova Friburgo, Rio de Janeiro.

Foram incluídas somente crianças livres de cárie (81 crianças) e crianças com grande quantidade de cárie, ou seja, quatro ou mais lesões (87 crianças). Para a coleta, as crianças precisavam estar sem comer nem escovar os dentes há pelo menos 30 minutos, de modo que a composição da saliva fosse a menos alterada possível. As análises genotípicas de polimorfismo em DEFB1 e nos três genótipos do microRNA 202 (TT, CT e CC) foram feitas nas mesmas amostras, de modo a avaliar o impacto das variações polimórficas nos níveis salivares de betadefensina.

A pesquisa consistiu ainda na realização de um questionário comportamental entre as crianças para detectar, por exemplo, o número de escovações diárias (1, 2, 3 ou mais), quais crianças escovavam os dentes antes de dormir, quais usavam fio dental e quais ingeriam doces entre as refeições. Os resultados foram tabulados de acordo com a divisão entre crianças livres de cárie e crianças com muitas cáries. Por fim, foi feita uma análise multifatorial que levou em conta os resultados genotípicos de DEFB1 e do microRNA 202, os níveis de betadefensina na saliva e os critérios de avaliação comportamental das 168 crianças.

“Na primeira parte do trabalho, não conseguimos verificar uma associação entre polimorfismo em DEFB1 e variações nos níveis salivares de betadefensina hBD1, hBD2 e hBD4. Mas, na segunda parte, descobrimos uma associação entre polimorfismo no microRNA 202 e os níveis de betadefensina. A análise genotípica do microRNA 202 demonstrou que o seu genótipo CC estava associado a níveis menores de betadefensina hBD1 na saliva. Houve associação entre o microRNA 202 e a suscetibilidade à cárie”, disse Küchler.

Os resultados sugerem que o genótipo CC do microRNA 202 interage com o RNA mensageiro do gene de DEFB1, já que a expressão da betadefensina hBD1 na saliva é menor nas crianças que carregam o genótipo CC do microRNA 202. E a expressão menor de hBD1 na saliva é um fator de suscetibilidade para o aparecimento de lesões de cárie.

Trata-se de um resultado importante, porém ainda preliminar. O trabalho é o primeiro a sugerir associação entre níveis salivares de betadefensina e polimorfismo no microRNA 202. Para saber se, de fato, o resultado procede, é necessário que a pesquisa seja replicada em outros estudos.

Grupos de pesquisadores de instituições de ensino superior do Paraná e do Amazonas iniciaram a coleta e análise de amostras de saliva em crianças de Curitiba e Manaus. Do resultado dessas investigações depende a validação dos resultados de Küchler, Lips e colegas. “No futuro, quando identificarmos o conjunto de genes associados ao aparecimento da cárie, será possível detectar, bem cedo, quais crianças teriam maior predisposição ao desenvolvimento de cárie e iniciar tratamento de prevenção”, disse Küchler.

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