Contra cura gay, psiquiatra diz: "É preciso se preocupar com educação sexual para conviver com diversidade"

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 19/11/2016 às 7:04
"Homossexualidade não é crime, não é doença e também não é pecado", diz Carmita Abdo, durante palestra sobre cura gay no 34º Congresso Brasileiro de Psiquiatria (Foto: ABP/Divulgação)
"Homossexualidade não é crime, não é doença e também não é pecado", diz Carmita Abdo, durante palestra sobre cura gay no 34º Congresso Brasileiro de Psiquiatria (Foto: ABP/Divulgação) FOTO: "Homossexualidade não é crime, não é doença e também não é pecado", diz Carmita Abdo, durante palestra sobre cura gay no 34º Congresso Brasileiro de Psiquiatria (Foto: ABP/Divulgação)

SÃO PAULO - Referência em assuntos sobre sexualidade, a médica Carmita Abdo recebeu o desafio de ministrar uma palestra, durante o 34º Congresso Brasileiro de Psiquiatria (CBP), em São Paulo, em outubro de 2016, sobre cura gay – termo que remete a práticas que eram usadas para reverter a homossexualidade, que já foi considerada crime, pecado e doença. "Será que hoje a sociedade consegue entender que não se trata mais de doença?", questiona a psiquiatra, ao lembrar que, nos anos 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da classificação patológica. Eleita a primeira presidente mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Carmita garante que temas sobre sexualidade terão prioridade na sua gestão e reforça que, no lugar da cura gay, a sociedade deve se preocupar com educação sexual. "Falta tolerância com quem não é exatamente igual a gente. É preciso saber que as práticas sexuais são diferentes", diz Carmita Abdo à jornalista Cinthya Leite. Confira os destaques da entrevista:

RESGATE HISTÓRICO

"Ao longo da história, a homossexualidade recebeu muitos conceitos. Num primeiro momento, foi considerada um crime passível de pena, em meados dos anos 1700. Essas penas incluíam desde prisão até condenação à morte, dependendo do rigor de quem julgava e de uma série de circunstâncias. De crime, a homossexualidade passou a ser considerada pecado e, depois, doença. Nesse contexto, começaram a aparecer os tratamentos. Durante o nazismo, os homens homossexuais foram forçados ao ato sexual com prostitutas, enquanto que as mulheres homossexuais sofriam um estupro por soldados. Isso era muito difícil. Na verdade, fica este triângulo: pecado, doença e crime. Então, será que a gente já se livrou disso? Será que, nos dias de hoje, consegue-se entender que não é mais doença? A Associação Americana de Psiquiatria e a Organização Mundial de Saúde, desde os anos 1970 e 1990, respectivamente, retiraram a homossexualidade das classificações patológicas. Estamos hoje em 2016 e ainda se fala 'homossexualismo'. O 'ismo' é um sufixo relacionado à doença. Alguém que se referir à homossexualidade como homossexualismo está dizendo que essa é uma prática doentia. E por enquanto, não é comum falar homossexualidade como se fala heterossexualidade."

Leia também:

Luana Piovani fala sobre a cura gay: “Nem tudo o que é legal, é moral”

O TRIÂNGULO CRIME, PECADO E DOENÇA

"Nenhuma destas partes do triângulo deveríamos hoje considerar válidas porque homossexualidade não é crime, não é doença e também não é pecado. Claro que, para algumas religiões, é um pecado; então, eu respeito. Em relação a ser crime, atualmente ninguém, exceto alguns países do Oriente, criminaliza a homossexualidade; as pessoas morrem apedrejadas ainda. O mundo não baniu essa ideia completamente nos dias de hoje. E quanto a ser doença? Ainda não existe um consenso tão bem estabelecido na população de que ser homossexual não é ser doente."

O DESAFIO

"O coordenador do simpósio (do 34º Congresso Brasileiro de Psiquiatria) fez um desafio para mim: eu tinha que provar se eu sou a favor ou contra a cura gay. E no final, apresento um vídeo no qual o secretário das Nações Unidas se apresenta como uma pessoa que está disposta a divulgar como é uma situação absurda a mudança de prática sexual de alguém. E eu digo antes do vídeo: há décadas que a classificação americana e a da OMS retiraram a homossexualidade dos seus quadros de patologia. Compartilhamos dessa convicção, principalmente em função do suicídio, dos surtos psicóticos, das crises de depressão severa consequentes às tentativas frustradas (para reverter a homossexualidade), precipitadas e sem respaldos científicos às quais os homossexuais foram submetidos. Eles próprios queriam mudar isso para não viverem debaixo de um estigma muito grande. Mas ainda que voluntariamente eles tenham se oferecido (às práticas de reversão), interessados em se tornarem heteros, não se admitem essas práticas numa época em que a normatização da sexualidade está cada vez mais sem propósito. No lugar da cura gay, a gente tem que se preocupar com mais saúde e educação sexual para as diferentes gerações. E isso vale não apenas para quem está em idade de prática sexual. Quem é educado sexualmente na mais tenra idade começa a entender sobre diversidade sexual e a poder conviver com essa diversidade. É isto que está faltando: tolerância com aquilo ou com aquele que não é exatamente igual a gente. Então, essa educação sexual seria para que as pessoas pudessem saber que as práticas sexuais são diferentes."

SOFRIMENTO

"Em contrapartida, uma coisa que observamos nas novas classificações é que agora, em questões de sexualidade, a preocupação é com o seguinte paradigma: eu vou tratar, como profissional de saúde, onde houver sofrimento. Por exemplo: se o indivíduo sofre com disfunção erétil, ele vai me procurar. Se não me procurar, ao atendê-lo por outra questão, eu vou perguntar sobre sexualidade, vou saber que ele sofre e irei tratar. E por acaso, se ele não quiser tratar a disfunção erétil, eu vou tratar pelo menos a causa da disfunção erétil, que pode ser diabetes, depressão, ansiedade ou hipertensão. Nós não vamos fazer abordagem em quem não apresenta sofrimento diante de sua situação sexual. Agora, vale lembrar o seguinte: tudo isso deve ser considerado desde que uma pessoa não exerça uma sexualidade que interfere no bem-estar de outra."

À FRENTE DA ABP

"A questão da sexualidade vai ter um peso; vai ter uma importância nesta minha gestão (como presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria entre 2017 e 2019). Há um tempo, pleiteio que a psiquiatria seja uma área de atuação da sexologia médica no País. Por incrível que pareça, não é. Então, no Brasil, quem vai atender disforia de gênero? É o psiquiatra. E disfunção sexual de base psíquica, quem vai atender? E de repente, nos não temos (a psiquiatria) como área de atuação (da sexologia médica). Não dá para se furtar disso. Sexualidade é um tema que ganha cada vez mais espaço - e não é porque se faz sexo ou se deixa de fazer, ou se há falhas ou se não há falhas. Isso foi muito debatido nos fins dos anos 1990, início dos anos 2000, quando começaram a surgir as drogas que melhoravam a função sexual. Hoje se discute gênero, orientação sexual; discute-se a despatologização de uma série de comportamentos sexuais e práticas sexuais. Então, como ficar fora disso?"

A jornalista viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria