Lições aprendidas em sala de aula dentro de hospital no Recife têm ação terapêutica

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 27/09/2015 às 7:04
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Enquanto fazem tratamento para o câncer, Mateus, Adrienny e Lucas (da esq. para dir.) têm aulas de português, matemática, ciências, geografia, história e artes (Foto: Cinthya Leite) Enquanto fazem tratamento para o câncer, Mateus, Adrienny e Lucas (da esq. para dir.) têm aulas de português, matemática, ciências, geografia, história e artes (Foto: Cinthya Leite)

Hoje eu vou contar para vocês a história de crianças que conseguem vencer a dor, a luta e o medo que geralmente vêm com o câncer. Essa superação é possível graças a um trabalho lúdico e educativo que ganha uma vida imensa quando a professora Cristiane Rose Pedrosa abre um largo sorriso para ensinar que somar, dividir, subtrair e multiplicar são algumas das muitas lições que podem ser aprendidas enquanto a garotada está em tratamento para debelar um tumor que tem chances altas de cura. Felizmente, em torno de 70% das crianças e adolescentes com câncer podem ser curados, se diagnosticados precocemente e tratados em centros especializados.

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No dia 17, conheci três crianças que fazem parte desse universo e estão cheias de energia para vencer uma doença que tem como parte do tratamento a humanização que brota numa sala de aula dentro do hospital. Enquanto recebem atendimento de uma equipe multiprofissional, Adrienny, Lucas e Mateus têm aula de português, matemática, ciências, geografia, história e artes. E nesse cenário, eu percebi o quanto a pedagogia hospitalar pode ter uma ação (também) terapêutica.

Internados no Centro de Onco-Hematologia Pediátrica (Ceonhpe) do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), no bairro de Santo Amaro, área central do Recife, Adrienny Isabelly da Costa (6 anos), Lucas Kawan Delmondes (9 anos) e Mateus Ferraz (7 anos) aprendem a reconhecer as letras, a escrever, a fazer contas e a fazer as mais belas pinturas enquanto recebem quimioterapia. Eles são alunos da Semear, primeira classe hospitalar de Pernambuco.

Cristiane Rose Pedrosa, lotada na rede municipal de educação, é a professora da Semear (Foto: Cinthya Leite) Cristiane Rose Pedrosa, lotada na rede municipal de educação, é a professora da Semear (Foto: Cinthya Leite)

Assim como a Semear, existem outras 154 salas de aulas em hospitais e unidades de saúde espalhados pelo Brasil, segundo levantamento feito pela pedagoga Eneida Simões da Fonseca, do Departamento de Estudos da Educação Inclusiva e Continuada da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com vasta experiência em pedagogia hospitalar, Eneida é PhD em desenvolvimento e educação de crianças hospitalizadas pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres, na Inglaterra.

Ao longo de três décadas, Eneida conta que já observou crianças com diversos problemas de saúde em classes hospitalares. "Há aquelas com distúrbios nutricionais, que interferem no desenvolvimento, como também outros alunos com diabetes, problemas renais e cardíacos, hipertensão arterial, problemas ortopédicos, paralisia cerebral e anomalias genéticas, entre tantos outros distúrbios", relata Eneida.

Entre 1983 e 2007, ela foi professora de alunos de educação infantil na escola do Hospital Municipal Jesus, no Rio de Janeiro, de onde se aposentou em 2008. Diga-se de passagem, o atendimento pedagógico no Hospital Municipal Jesus confunde-se com a história da classe hospitalar no Brasil. Iniciadas no ano de 1950, as práticas educativas nessa unidade de saúde eram feitas por meio de atendimento leito a leito pela professora primária Lecy Rittmeyer. Mas só em 1961 o atendimento escolar foi oficializado e, assim, o Hospital Municipal Jesus recebeu doações de materiais que ofereciam uma estrutura mínima de sala de aula, como mesas, cadeiras e quadro negro.

Atualmente, a classe hospitalar do hospital é referência nacional nesse atendimento, como resultado do empenho das pessoas envolvidas no processo e da concretização do convênio entre a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria Municipal de Saúde.

Os ensinamentos são transmitidos aos alunos nos leitos de enfermaria ou na própria sala de aula (Foto: Cinthya Leite) Os ensinamentos são transmitidos aos alunos nos leitos de enfermaria ou na própria sala de aula (Foto: Cinthya Leite)

Aqui no Recife, a Semear nasceu a partir de uma iniciativa do Grupo de Ajuda à Criança com Câncer de Pernambuco (GAC-PE). Para tirar o projeto do papel, a instituição se uniu à Prefeitura do Recife, ao Huoc e ao Instituto Ronald McDonald – este último forneceu recursos financeiros para a implantação da estrutura da Semear, que segue estratégias estabelecidas pelo Ministério da Educação (MEC) para oferta desse tipo de atendimento pedagógico.

O Huoc disponibilizou o espaço físico para a instalação da sala. Já a Secretaria de Educação do Recife colabora com a mão de obra (a professora Cristiane é lotada na rede municipal de ensino), material didático, tablets e kits de robótica.

"Livros não entram na sala hospitalar porque acumulam muita poeira. Precisamos fazer o máximo que está ao nosso alcance para controlar o risco de infecção", explica Cristiane, que não esconde a alegria ao falar que, graças à Semear, crianças e adolescentes podem dar continuidade aos estudos mesmo internados para tratamento contra o câncer.

Lucas Kawan está em processo de alfabetização (Foto: Marcelo Barroso/Divulgação) Lucas Kawan está em processo de alfabetização (Foto: Marcelo Barroso/Divulgação)

Em 10 meses de atividades pedagógicas, a classe hospitalar pernambucana já apresenta resultados que mostram como essa modalidade de atendimento educacional impulsiona a aprendizagem e resgata o bem-estar dos pequenos pacientes. Das 17 crianças que frequentam a classe, duas chegaram ao hospital sem saber ler ou escrever. A boa notícia é que ambas estão em processo de alfabetização e já conseguem ler palavras simples.

É o caso do aluno Lucas Kawan, que faz tratamento para leucemia no Ceonhpe. Para ele, a sala de aula do hospital serviu como oportunidade de ingresso à vida escolar. No município de Trindade, Sertão de Pernambuco, onde mora, o garoto nunca estudou. Mas, assim que iniciou o tratamento da leucemia, começou a descobrir o mundo da aprendizagem. “Eu agora sei escrever meu nome”, vibra o garoto, que fez questão de escrever o nome ao lado do boneco que pintou durante a aula de artes, como forma de mostrar que tem respondido positivamente ao processo de iniciação à leitura e escrita.

E para provar que uma criança alfabetizada se torna um cidadão crítico, Lucas Kawan conta que já sabe o que deseja ser quando crescer. “Vou ser doutor.” E ele explica o motivo: “Eu quero furar os outros, do mesmo jeito que fazem para cuidar de mim”, diz o menino com um sorriso imenso no rosto, ao se referir aos furinhos que ganha na mão para receber o acesso venoso que facilita a aplicação de medicamentos através de uma bomba de infusão – máquina que o acompanha na sala de aula no hospital e que calcula de forma precisa a dose de quimioterapia.

O garoto sabe que esses furinhos são importantes para a sua recuperação. “Tem dia que não dá para estudar porque eu fico muito aplasiado”, conta ele, se referindo a um termo que aprendeu a usar depois de tanto ouvir os médicos, à beira do leito na enfermaria, definirem uma condição em que o paciente com câncer fica com imunidade baixa devido à queda das taxas de leucócitos, plaquetas e hemácias.

Adrienny Isabelly aprende a reconhecer letras e números (Foto: Cinthya Leite) Adrienny Isabelly aprende a reconhecer letras e números (Foto: Cinthya Leite)

Assim como outros alunos da Semear, Lucas Kawan é um exemplo de que a classe hospitalar é valiosa para a garotada se sentir produtiva no papel de aprendiz e aceitar o tratamento com otimismo. “Entendemos que a classe hospitalar funciona como um renascimento da criança internada. Se oferecemos continuidade ao ensino dos conteúdos da escola de origem desses pequenos pacientes, é porque acreditamos na cura”, diz a oncologista pediátrica Vera Morais, presidente do Grupo de Ajuda à Criança com Câncer de Pernambuco (GAC-PE).

Atualmente, 17 crianças entre 6 e 12 anos fazem parte da Semear. Entre elas, está a aluna Adrienny Isabelly, que mora na cidade de Olinda, no Grande Recife. No Ceonhpe, ela faz tratamento para osteossarcoma (tumor ósseo). Enquanto recebe atendimento multiprofissional, ela se diverte com a professora Cristiane - e, claro, também começa a reconhecer as letras. "Eu quero estudar para ser médica e cuidar da minha mãe", diz Adrienny Isabelly.

Já o coleguinha de turma da garota, o aluno Mateus Ismael, que deseja ser dono de banco quando crescer. "Quero ter muito dinheiro. É por isso que estudo tanto matemática", conta o garoto, que faz tratamento para leucemia. Ele mora em Floresta, no Sertão de Pernambuco. Lá estuda no Centro de Educação Municipal Professora Fortunata Ferraz da Rosa, no Centro da cidade.

Ao lado da professora Cristiane, Mateus Ismael mostra como ficou o desenho após caprichar na pintura (Foto: Cinthya Leite) Ao lado da professora Cristiane, Mateus Ismael mostra como ficou o desenho após caprichar na pintura (Foto: Cinthya Leite)

As crianças que frequentam a classe hospitalar devem estar matriculadas numa escola regular", explica Eneida. Na Semear, os responsáveis pelos estudantes que ainda não estavam matriculados neste ano estão em processo de regularização, no município onde residem, da situação dos pacientes/estudantes em uma das unidades escolares da cidade.

Um detalhe importante, durante o processo de aprendizagem, é o respeito das limitações de cada um. “Há dias em que as crianças estão indispostas por causa dos efeitos colaterais do tratamento e, por isso, não têm condições de participar das atividades. Então, preciso estar preparada para perceber essas particularidades e só retomar as aulas quando os pacientes se restabelecerem”, diz a professora da Semear, Cristiane Rose Pedrosa.

Em cada ensinamento transmitido aos alunos, seja nos leitos de enfermaria ou na própria sala de aula, Cristiane mostra que saúde e educação andam de mãos dadas para fazer desabrochar felicidade, esperança e amor - uma tríade que tem forças para fortalecer qualquer ação terapêutica.

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