Quanto custa uma vida?

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 13/08/2015 às 11:01
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Imagem da paciente diagnosticada com HPN Auxiliadora Rattes (Foto: Malu Silveira / NE10) Auxiliadora foi diagnosticada com HPN, uma doença rara que destrói as hemácias. Para ter uma vida normal, precisa de um medicamento que custa cerca de R$ 11 mil (Fotos: Malu Silveira/Casa Saudável)

Se sua vida tivesse um preço, quanto valeria? Seria possível quantificar sonhos, angústias, medos e felicidade? Para alguns poucos escolhidos há, sim, uma quantia a ser paga pela existência – e ela é milionária. Esse montante simbólico atende por Soliris, nome fantasia para um composto chamado eculizumab, medicamento que representa a única opção para pacientes diagnosticados com hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), uma doença rara que, em resumo, destrói as hemácias dentro dos vasos sanguíneos. Em Pernambuco, três pacientes ganharam uma ação na Justiça para ter o direito ao fornecimento da medicação. Essa felicidade adquirida, no entanto, esbarra num obstáculo que tortura dia a dia: o constante atraso na entrega do medicamento.

Imagem do remédio Soliris (Foto: Malu Silveira) Descontinuidade do uso do medicamento pode levar a inúmeras crises, o que compromete órgãos vitais

Cada vidro de Soliris (30 ml) custa algo em torno de R$ 11 mil. A quantia assusta? Vai piorar. Segundo levantamento da revista norte-americana Forbes, esse é o medicamento mais caro do mundo: custaria ao usuário cerca de US$ 400 mil ao ano. Mesmo se fornecido e administrado corretamente, seis ampolas por mês, o que representa cerca de R$ 66 mil, Soliris não cura, mas equipara a sobrevida do paciente ao de uma pessoa saudável, com direito à vida e à mesma rotina – salvo algumas pequenas restrições médicas recomendadas.

Em 2012, a reportagem do NE10 acompanhou a história dos quatro pacientes pernambucanos que recorreram ao Judiciário para receber do Sistema Único de Saúde (SUS) as doses mensais do eculizumab. Sim, hoje são três pacientes, porque um deles, o aposentado Severino Galvão, à época com 45 anos, não resistiu às complicações e, afetado pela descontinuidade do tratamento, faleceu em 2013.

Naquele período, as pessoas com o diagnóstico de HPN reclamavam de um atraso de dez dias. Parece pouco, mas é desesperador para quem convive com a doença. Imagine hoje, quando eles enfrentam, em média, uma demora de dois meses. Vale ressaltar que o atraso, segundo os pacientes, já chegou a quatro meses. “Eu não tomo o remédio desde o dia 12 de junho. Esta semana para mim vai ser fatal. Já fica a mala pronta para correr para o hospital. A vida da gente muda totalmente. Temos que nos estruturar. Cada um vai se adequando de uma maneira para tentar contornar (as crises)”, lamenta a pedagoga Auxiliadora Rattes, 46 anos, diagnosticada com hemoglobinúria paroxística noturna em 2009.

Auxiliadora-remedios-600 Além do Soliris, os pacientes precisam de vários outros medicamentos para controlar as complicações causadas pela doença. Auxiliadora, por exemplo, toma cerca de 10 comprimidos por dia

A professora Elizete Galvão, 60 anos, afirma ter tomado a última dose do medicamento no começo de julho. “A segunda dose do mês de julho eu não tomei.  A  primeira dose de agosto ainda não recebi e, provavelmente, não vou receber a  segunda dose de agosto”, reclama.

Quando questionada sobre a resposta que a Secretaria Estadual de Saúde (SES), responsável pelo repasse do Soliris para os pacientes, oferecia nas inúmeras idas ao órgão na esperança de receber o que lhe é  garantido judicialmente, Elizete disse que funcionários alegavam que a medicação estava em processo de  compra e que o procedimento estava bastante adiantado.

Em sua última visita à SES, no entanto, lhe informaram que o remédio ainda não havia chegado. “É uma diferença muito grande quando não tomamos o remédio. Primeiro porque a gente  fica sem energia, as taxas caem logo. Além de correr risco mesmo. De outra vez  que faltou por muito tempo eu cheguei a ter uma trombose na perna. Por enquanto está dando pra segurar", conta. Mas e depois?

Procurada pela reportagem do Casa Saudável, a SES se limitou a informar, por meio de nota de esclarecimento, que o medicamento Soliris (eculizumabe), produzido nos Estados Unidos, não possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e, assim, não integra a lista dos remédios fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A nota acrescenta que, mesmo não havendo protocolo estabelecido no SUS e limitações de evidência de eficácia, segundo parecer farmacêutico do Ministério da Saúde, a SES está tomando as medidas legais necessárias para a aquisição do medicamento e agilizando todos os trâmites necessários.

A resposta levantou a dúvida do blog de que o fornecimento do medicamento não seria obrigação por parte do Estado, uma vez que vários fatores, descritos acima na nota de esclarecimento do órgão, dificultam e põem em dúvida a aquisição do Soliris. Seria um favor do Estado para os pacientes? O artigo 196 da Constituição Federal afirma que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Munidos desse artigo, milhares de pacientes recorrem ao poder judiciário para obter medidas (seja por meio de cirurgias, medicamentos ou outros benefícios) que garantam sua vida, na maioria das vezes por falta de poder econômico.

“O Estado tem a obrigação de fornecer tudo o que tiver ao alcance para restabelecer a saúde do paciente. E, para a Justiça, a única pessoa com capacidade técnica para dizer o que é possível ser feito para melhorar a saúde do paciente é o médico”, pontua a advogada Diana Câmara, especialista em direito à saúde. Dessa forma, a falta de registro na Anvisa ou o fato de não integrar a lista dos remédios fornecidos pelo SUS não impede, tecnicamente, a determinação legal.

Para Auxiliadora, que enfrenta diariamente uma luta para garantir seu direito, a vida está repleta de alguns sonhos. Viajar para Europa, fazer um mestrado, cuidar dos três filhos. Para alguns, esses sonhos não têm preço. Para ela, está dentro de um vidro. E para você? Quanto custa a vida?

Entenda a doença

A hemoglobinúria paroxística noturna é uma doença crônica, rara e adquirida. E sem cura. Geralmente, atinge homens e mulheres entre 30 e 45 anos. Dados coletados pela extinta Associação Brasileira de HPN (ABHPN), estimam que cerca de 200 pessoas convivem com a doença no Brasil. Os principais sintomas são a fadiga intensa, espasmos no esôfago, dores abdominais, anemia profunda e a presença de sangue da urina (hematúria). Pelas características, consideradas muitas vezes comuns a outras inúmeras enfermidades, o diagnóstico é difícil.

“É um desafio fazer o diagnóstico de HPN. O atraso dele, não só no Brasil, pode chegar de um a dez anos. Isso pode piorar a situação do paciente e ele pode até morrer sem diagnóstico. Quantos pacientes são diagnosticados, por exemplo, com insuficiência renal e ficam na diálise para sempre porque não tiveram o diagnóstico precoce?”, questiona a hematologista Joana Koury, responsável pelo tratamento de dois dos três pacientes pernambucanos relatados na matéria.

Uma outra alternativa para os pacientes diagnosticados seria um transplante de medula óssea. Essa opção, no entanto, é combatida pela maioria dos especialistas. “Quando falamos de HPN, na situação atual, estamos falando de uma doença controlada com medicação (o Soliris) que iguala a sobrevida a de uma pessoa saudável. Do outro lado, está um transplante que tem taxa de mortalidade, nos primeiros 30 dias, de 25%. Isso é o que torna proibitivo o transplante de medula óssea no HPN clássico”, conclui a médica.