Reflexão: Estamos vivendo um período de inflação diagnóstica do autismo?

Cinthya Leite
Cinthya Leite
Publicado em 02/04/2015 às 0:01
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Uma corrente de especialistas acredita que muitas crianças estão recebendo o diagnóstico de autismo muito cedo, quando ainda estão se desenvolvendo (Foto: Free Images) Uma corrente de especialistas acredita que muitas crianças estão recebendo o diagnóstico de autismo muito cedo, quando ainda estão se desenvolvendo (Foto: Free Images)

Neste Dia Mundial da Conscientização do Autismo (2/4), vale recordar que, em 2011, o Journal of Pediatrics, periódico científico internacional que apresenta pesquisas relacionadas à saúde na infância, publicou um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego (EUA), com destaque para um simples questionário que, segundo os autores do trabalho, pode ajudar a diagnosticar o autismo em crianças de apenas 1 ano. A lista de perguntas analisa a forma com que o bebê lida com aspectos da comunicação (olhares, sons e gestos).

Em medicina, o diagnóstico precoce é considerado muito importante quando vem à tona a maioria das doenças. A questão que intriga, no caso da aceleração da detecção do autismo (transtorno invasivo do desenvolvimento que acomete 2 milhões de brasileiros), é a possibilidade de estarmos vivendo um período de inflação diagnóstica dessa síndrome. "Esse superdiagnóstico causa muitos danos, inclusive na infância. Percebemos que existe uma tendência da prática diagnóstica estar banalizada. Muitas crianças estão recebendo o diagnóstico de autismo muito cedo, quando ainda estão se desenvolvendo", diz a psicóloga e psicanalista Valéria Aguiar, membro da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) e do Espaço CPPL, no Recife.

Essa questão levantada pela especialista anuncia um caloroso debate. De um lado, há quem defenda que o diagnóstico mais rápido do autismo aumenta a eficácia do tratamento. Outra corrente acredita que, mesmo diante de uma criança com sinais do transtorno, é preciso aguardar um pouco para se fechar um cenário conclusivo. "Nessa espera, não significa que vamos ficar de braços cruzados. Reconhecemos esses sinais que podem comprometer o desenvolvimento infantil e, assim, oferecemos cuidados imediatos às crianças e às famílias, mas sem criar rótulos imediatistas", complementa Valéria.

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O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, estima que atualmente uma, em cada 68 crianças, apresenta transtorno do espectro autista. Se considerarmos que, entre 2000 e 2012, o CDC estimou que, entre 2000 e 2012, a estimativa era de uma para 150 crianças, houve um aumento de 120% da incidência do transtorno. “Segundo esses dados, estaríamos enfrentando uma epidemia de autismo”, critica a psicóloga e psicanalista Ana Elizabeth Cavalcanti, também do Espaço CPPL.

Uma leva de especialistas defende que esses números crescem a cada dia porque só agora se sabe diagnosticar o autismo. "É o efeito de uma prática diagnóstica hegemônica que não leva em consideração o contexto psicossocial de sintomas que podem indicar autismo e tendem a representar comportamentos próprios da infância e outros que também podem ser encontrados nas mais diferentes condições psíquicas das crianças", explica Ana Elizabeth.

Alguns sinais, isoladamente, não indicam necessariamente risco de autismo (Foto: Reprodução/Internet) Alguns sinais, isoladamente, não indicam necessariamente risco de autismo (Foto: Reprodução/Internet)

Para ela, andar nas pontas dos pés, gostar de girar objetos ou o próprio corpo, falar na terceira pessoa, ter seletividade alimentar e crises de fúria intensas são hábitos encontrados no desenvolvimento habitual das crianças. "E mesmo a evitação do olhar, o embotamento afetivo, o isolamento, a baixa tolerância à frustração e o repertório restrito de interesses podem ser encontrados nas mais diferentes situações de dificuldades enfrentadas pela criança. Por si só, eles não são e nem indicam, necessariamente, risco de autismo. Muito menos, são suficientes para diagnosticá-lo”, frisa Ana Elizabeth.

Nesse contexto, a psicóloga também alerta para a importância da relação dos pais com a criança. Em muitos casos de diagnóstico de autismo, o rótulo passa a ser uma influência negativa. "Não foram poucas as vezes em que presenciamos pais surpresos ao notarem que seus filhos brincavam conosco e se davam conta de que não brincavam com eles porque não acreditavam que pessoas com autismo eram capazes de brincar”, completa a psicóloga.

Vale frisar que, em qualquer idade, é possível perceber que algo não vai bem com as crianças, seja do ponto de vista físico ou psíquico. Mas isso não significa que seja possível determinar quadros psicopatológicos definidos, como o autismo. Como a criança é um ser em pleno amadurecimento ou constituição neurofisiológica e psíquica, é preciso identificar esses sintomas como sinais de alerta de que algo não vai bem, mas que pode ser parcial ou totalmente superado com a ajuda adequada. Esses sinais podem surgir em determinadas etapas do desenvolvimento normal das crianças, como podem também significar diferentes transtornos, não somente o que se conhece como autismo.